15.12.05



Um acaso curioso e dois livros ma-ra-vi-lho-sos

Enquanto isso, no Municipal, uma figura nefasta pega carona na popularidade alheia

Tive uma das maiores crises existenciais da minha vida com uns 7 ou 8 anos, quando descobri que a Terra fazia parte do Sistema Solar, que fazia parte de uma galáxia, que fazia parte do universo... que não fazia parte de coisa alguma, ou fazia parte de absolutamente tudo. Onde começava essa coisa, o universo? E onde acabava? E se existia, e se estava, onde, raios, estaria? Em algum lugar tinha que estar, não? Que lugar era esse? E onde começava e acabava esse lugar? Perdi muitas noites de sono por causa disso. Tive conversas intermináveis com meu avô, que adorava astronomia e sabia tudo sobre o universo e os corpos celestes, e nem assim encontrei resposta satisfatória ao portentoso enigma que me atazanava.

Até hoje me angustio quando penso no universo e me vejo incapaz de imaginar o infinito -- ou, pelo menos, algo que existe numa dimensão que não alcanço. Com a idade, porém, me conformei com o fato de que certas coisas, como a popularidade do Latino, escapam à nossa compreensão. Na época, porém, ainda achava que tudo podia ser entendido, desde que nos aplicássemos ao seu estudo.

Talvez por isso, gosto muito de livros que põem a ignorância humana em perspectiva. Já me diverti imensamente com Carl Sagan, Stephen Hawking e Steven Jay Gould, mas nunca pensei que pudesse chorar de rir, literalmente, lendo sobre a expansão do universo. Comprei a "Breve história de quase tudo", de Bill Bryson, porque era o mais gordinho de uma livraria de aeroporto sem a assinatura de Danielle Steele ou Sidney Sheldon. E não é que descobri um tesouro? Um livro inteligente, claro, com um fenomenal senso de humor. Bill Bryson é americano mas, significativamente, o selinho da edição brasileira, que acaba de sair, diz que ele já vendeu mais de dois milhões de exemplares na Inglaterra. Faz sentido.

Se você é do tipo que gosta de se torturar pensando na explosão de supernovas e em eras glaciais, em buracos negros e na evolução e extinção de espécies, este é o livro para você. Além de uma aula sensacional sobre tudo (ou, vá lá, quase tudo), vai encontrar ao longo das suas 541 páginas uma espantosa galeria de cientistas, um mais esquisito do que o outro -- o que o levará a terminar a leitura considerando-se uma criatura perfeitamente normal. Se é que isso existe.

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A Companhia das Letras, mesma editora de "Breve história de quase tudo", publicou também, coincidentemente, "Quase tudo": dois dos melhores livros do ano, só assim, numa tacada, na mesma semana. "Quase tudo", como a esta altura sabe qualquer criatura medianamente antenada, é o livro de memórias da Danuza Leão, uma dessas raras pessoas que não só têm o que contar -- e como tem! -- como o fazem de forma irresistível. Não há nada de "breve história" aqui, pelo contrário. Para quem não agüenta mais a enxurrada de literatura umbiguista de gente de 20 anos que acha que viveu, o livro é, perdoem-me o clichê, uma grande lição de vida. Danuza tudo viu, tudo fez, passou por tudo, foi a todos os lugares e, de quebra, conheceu todo mundo ? sempre alerta e atenta, sempre filtrando o que acontecia à sua volta através de um olhar interessado e de uma inteligência cintilante.

"Quase tudo" é o relato de uma vida particularmente intensa. Bons livros de memórias transitam numa fronteira delicada e perigosa, entre a omissão e a exposição; não chega a ser surpresa que este seja generoso e elegante como a autora, revelando mais do que se espera, guardando o que é de guardar. A leitura nos oferece uma conversa deliciosa, muitas vezes dolorida, com uma pessoa que ao fim consideramos amiga; mas não nos dá a intimidade de abordá-la na rua. Em suma: a medida exata.

Para mim, "Quase tudo" só tem um porém: uma mulher tão elegante, bonita e magra! como a Danuza não precisava, ainda por cima, escrever tão bem. O mundo não é justo.

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Wagner Tiso comemorou 40 anos de carreira, e recebeu uma das maiores provas de respeito que um artista pode receber do público: Zé Dirceu estava no Teatro Municipal e não foi vaiado. Havia até duas ou três bengalas presentes, mas nenhuma, infelizmente, foi posta em ação. Não posso falar pelo teatro inteiro, mas pelas pessoas que estavam na minha fila, pelos grupinhos que encontrei no intervalo, por conversas soltas: "Como podemos vaiar este cara sem ofender o Wagão?"

Ninguém achou solução; mas juro que esta foi a primeira vez na vida em que vi uma vaia parada no ar. Pessoalmente, como carioca, sinto-me duplamente afrontada pela permanência deste indivíduo por aqui. Primeiro, porque já nos bastam os canalhas locais, que os temos em quantidade; depois porque, quando estava no poder, ele sequer olhou para este estado ou para esta cidade. Agora, apeado, quer ser menino do Rio?!

Ah, francamente. Era só o que nos faltava.


(O Globo, Segundo Caderno, 15.12.2005)

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