29.12.05

Os ouriços das castanhas

Minha família e outros animais

Rabiscos de uns dias no sítio


Vocês sabem como nascem as castanhas portuguesas? Em ouriços verdes, que crescem numas árvores lindas, frondosas e esparramadas. Quando esses ouriços ficam maduros, caem no chão e são colhidos. Às vezes já estão abertos, o que torna relativamente fácil soltar as castanhas; quando fechados, só com expedientes variados -- luvas de couro, instrumentos de jardinagem, pedras. Vale tudo para libertar as castanhas da sua competente armadura.

Imagino que numa plantação profissional existam ferramentas apropriadas e precisas ara a tarefa, mas no sítio temos apenas dois castanheiros, plantados há 40 anos pelos meus pais, e que, mais ou menos por esta época do ano, gentilmente produzem as castanhas de que precisamos.

Os castanheiros foram presente do Mr. Smith, o vizinho inglês, único habitante da região quando o sítio foi construído, em princípio dos anos 60. São árvores voluntariosas, que não crescem como ou onde a gente quer, mas como lhes dá na telha. Não adianta plantar as sementes. Nada acontece. Mas por baixo dos castanheiros crescidos aparecem, volta e meia, umas mudinhas que, eventualmente, podem ser transplantadas. Assim chegaram as plantinhas pequenas nas latas do Mr. Smith, e assim já saíram daqui tantas outras.

Mr. Smith morreu há anos, seu terreno foi vendido e um novo loteamento cresce ao lado do sítio; o morro em frente, antes deserto, hoje é um mar de luzes. Apesar disso o céu continua cheio de estrelas e os castanheiros seguem, ano após ano, seu destino de árvores bem amadas, enchendo o gramado de ouriços.

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Nossos outros ouriços são animais, mas não muito diferentes em potencial catastrófico dos das castanhas. Os cachorros que o digam. Xarope, um jovem pastor alemão ainda inexperiente, teve seu primeiro encontro com um deles há alguns meses. Apareceu em casa ganindo, desesperado, com mais de 60 espinhos espetados na boca e no focinho. Teve que ser anestesiado para que o veterinário pudesse dar jeito na situação. Ignoramos o que aconteceu com o ouriço; e o pior é que não temos certeza de que o Xarope tenha aprendido a lição. A Mala, apesar de mais velha e versada nos descaminhos da vida, já caiu em tentação com ouriços em três diferentes ocasiões, embora nunca tenha se dado tão mal quanto o pobrezinho do Xarope.

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Nega, a gata da Mamãe, apareceu no sítio bebezinha, abandonada por sabe-se lá quem, e cresceu junto com o Baú, maior e mais feroz de todos os cães que tivemos. Os dois se adoravam mas, inevitavelmente, ele começou a crescer mais, e mais depressa. Um dia, inocente da própria força, acabou sendo mais bruto do que deveria, machucou-a, e ela, cabreira, nunca mais se aproximou dele. Ficava na segurança da varanda, olhando-o através das grades. Baú respondia ao olhar sentidíssimo e chorava de tristeza, mas a Nega permaneceu irredutível. Tenho muita dó dele, que morreu sem ter conseguido reatar a velha amizade.

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Nega continua levando sua vidinha de gato. Despreza os outros cachorros, às vezes pega ratos e passarinhos e gosta de bípedes, especialmente da Mamãe. Gosta de brincar de animal selvagem, mordendo e arranhando incautos que ousam coçar a barriguinha irresistível que sorrateiramente oferece. Depois olha com os olhos mais cândidos do mundo a pele em frangalhos, se esfrega na perna da vítima e mia baixinho, como se pedisse desculpas. Eu mesma já caí nessa várias vezes. Ainda agora teclo estas mal traçadas cheia de arranhões. E o pior é que depois chamo a Mala de boba porque não resiste a um ouriço.

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Os pássaros estão quase todos com filhotes. Saíras, sanhaços, bem-te-vis, sabiás, sebinhos, tiés e outros, que não conheço, vêm alimentar-se das frutas que Mamãe lhes oferece. Além do almoço, levam quentinhas para o ninho, na forma de pedacinhos de mamão ou banana, para as crias. Os filhotes dos bem-te-vis já estão grandinhos e vêm comer com os pais, dos quais se distinguem apenas pela cor um pouco mais pálida e por um ar meio desajeitado.

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Antigamente havia peixes num laguinho do pátio. Eram carpas grandes, vermelhas e cinzas, sempre problemáticas. Às vezes comiam demais, às vezes de menos. Às vezes tinham doenças que desafiavam os veterinários da região, habituados a quadrúpedes. Apesar de tudo, sobreviviam bravamente, ajudadas sobretudo pela minha Mãe, que tem um olho clínico espantoso para gente e bichos.

Hoje o laguinho está vazio. As carpas morreram lá pelo terceiro assalto, junto com os planos da Mamãe de ter um pátio impecável, cheio de plantas. Foi quando o Baú veio para o sítio como cão de guarda. Acho que nunca lhe passou pela cabeça que aquelas coisas molhadas e coloridas pudessem ser comida, mas em compensação não havia como convencê-lo de que as flores do pátio não estavam lá para sua única e exclusiva diversão. Pior: deu de beber a água do laguinho, e ficar intoxicado. Resultado: adeus pátio impecável, adeus plantas raras, adeus carpas.

A violência faz vítimas insuspeitas.

(O Globo, Segundo Caderno, 29.12.2005)

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