6.10.05





Na estrada da vida, as grandes emoções

Eu conheci a Mulher Maravilha: Luzia Caracciolo, que adormeceu para sempre dia 27, aos 91 anos

Fui finalmente assistir a "Dois filhos de Francisco". Vi com interesse, achei a história bem contada e gostei dos atores, em especial das crianças; mas, sinceramente, não consigo entender a onda feita em torno do filme, sobretudo do ponto de vista sentimental. Tirando o dueto de Caetano Veloso e Maria Bethânia em "Tristeza do Jeca", nada, mas realmente nada, me emocionou na produção, a anos-luz de "Casa de areia" -- este sim um filme de arrepiar.

Obviamente é problema meu, porque na saída vi várias pessoas de olhos vermelhos, visivelmente comovidas. Fiquei com vontade de segurá-las pelo braço e pedir: "Me explica, me diz o que há aí que eu não vi, que eu não consegui perceber, que me escapou" -- mas essas coisas, é claro, não se explicam.

Para mim, o grande filme sobre música sertaneja continua sendo "Na estrada da vida". Foi feito há mais de 25 anos por Nelson Pereira dos Santos, conta a história da dupla Milionário e José Rico e, sabe-se lá por quê, teve pouquíssima repercussão no Brasil, embora fosse um sucesso imenso na China.

Neste, que é um dos poucos musicais brasileiros -- no sentido em que a trama vai sendo contada através da própria música -- os astros são Milionário e José Rico em pessoa, revivendo o passado de peões de obra. Se bem me lembro, a trilha sonora é 100% dos dois, ao contrário de "Dois filhos de Francisco", em que brilham sobretudo clássicos sertanejos. O que, diga-se, só faz bem ao filme.

Naquela época de Bossa Nova, música de protesto e Jovem Guarda, música sertaneja estava longe de ser um "produto" universal. Seu ibope fora da roça (que ouvia rádio mas não ia ao cinema) andava perto de zero. Era preciso ter muita coragem para meter a cara e fazer um filme daqueles, não fosse Nelson Pereira dos Santos quem é.

Não sei se "Na estrada da vida" conseguiu resistir ao tempo. Só o vi quando foi lançado, mas tê-lo visto então causou uma mudança radical na minha vida -- para melhor. Bípede essencialmente urbana, violinista recém-saída de uma orquestra, eu não tinha idéia de que, no interior, existia música da qual eu pudesse gostar tanto. A partir dali, corri atrás do tempo e de um repertório que preencheu, no meu coração, as lacunas da terra.

Até hoje gosto de garimpar música fora das paradas, e às vezes encontro maravilhas. Esta semana mesmo achei "Tropa de osso", do gaúcho Luiz Carlos Borges, que mexeu mais comigo, em quatro minutos, do que "Dois filhos de Francisco" em duas horas.

* * *

Talvez eu tenha até conhecido dona Luzia Caracciolo um pouco antes, mas só descobri que criatura extraordinária era a amiga da Mamãe quando, em 1994, aluguei um carro nos EUA e fui, junto com meu filho Paulinho, assistir ao Campeonato Mundial de Natação Masters em Montréal. Na época Mamãe estava com 70 anos e dona Luzia, com 80 -- mas tinham, ambas, muito mais energia do que o Paulinho e eu juntos. Depois de participar das várias provas em que estavam inscritas, ainda rodavam pela cidade, curtiam o festival de jazz, aproveitavam a noite.

O hotel em que estávamos, reservado através de uma agência de viagens bem-intencionada mas mal informada, ficava em plena zona. Paulinho e eu vivíamos de pé atrás com a vizinhança de junkies e tipos esquisitos; Mamãe e dona Luzia apenas achavam que o Canadá era mesmo um país estranho, muito diferente do Brasil.

Nossa última noite na cidade foi típica. Depois de fazer as malas, elas descobriram que ainda precisavam comprar presentes para algumas amigas. Eram três da manhã e, na esquina, havia um misto de drogaria e supermercado 24 horas. Pois lá ficaram as duas, em seus uniformes esportivos, examinando cuidadosamente os vários tons de rosa dos batons e esmaltes que queriam, para completo espanto dos habitués da casa, cobertos de tatuagens, piercings e correntes. Mal sabiam eles quem eram aquelas velhinhas inocentes, de aparência frágil...

Entre outras glórias, dona Luzia foi a primeira mulher a escalar o Dedo de Deus, nos idos de 1933, quando senhoras não faziam essas coisas. A energia que a moveu naquela escalada ainda estava muito presente no ano passado, quando, aproveitando uma brecha no Campeonato de Natação Masters em Riccione, Itália, fomos a San Marino, que é uma subida só.

Como de hábito, ela e Mamãe dispararam na frente, enquanto eu seguia atrás, esbaforida; e como em Montréal, dez anos antes, a colheita esportiva foi farta. Dona Luzia voltou ao Brasil com cinco medalhas de ouro.

Na terça passada, dia 27, feliz e cheia de idéias em relação à nova casa que construía, dona Luzia foi dormir -- e não acordou mais. Estava com 91 anos. Vai fazer muita falta no próximo Mundial de Masters, no ano que vem, em São Francisco, para o qual já estava fazendo planos com as amigas, as maravilhosas sereias vintage da nossa natação masters.

Viveu como pouca gente, e sabia disso:

-- Fiz o que eu queria. Prestei atenção na vida e fui recompensada.


(O Globo, Segundo Caderno, 6.10.2005)

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