O livro meu irmãozinho
História de alguns segredos de famíliaNasci no Brasil mas, por circunstâncias do destino, só aprendi português quando fui para a escola. Antes falava húngaro, a língua oficial da família, comum tanto a meu pai, que nasceu em Budapeste, quanto a minha mãe, que nasceu em Fiume, cidadezinha que pertencia então à Itália, mas antes pertencera à Hungria e hoje pertence à Iugoslávia.
Meu avô materno, o Nonno, que morava conosco, meus tios e minha avó paterna, a Nagymama, que moravam logo ali na esquina, as visitas que iam e vinham -- todos falavam húngaro.
Até hoje o húngaro tem, para mim, o som lá de casa. Perdi quase todo o conhecimento prático da língua, que ainda consigo compreender embora fale com dificuldade, mas a música das palavras ficou para sempre gravada no meu DNA como algo especial, só nosso, uma espécie de Código Rónai ao qual pouquíssima gente tinha acesso.
Quando fui à Hungria pela primeira vez, em 1977, fiquei em estado de choque ao constatar que todo mundo (todo mundo!) tinha a chave do nosso segredo. Taxistas, vendedoras de castanhas, garçonetes da Gerbeaud, jornaleiros -- todos falavam húngaro! E muito melhor do que eu! Era revoltante. Aquela peculiaridade única da nossa família, o nosso tesouro secreto, estava ali, devassado, aos ouvidos de todos.
A esta primeira sensação seguiu-se uma descoberta interessante: a de que só eu sabia o que sabia. Hippie de cabelão desgrenhado, usando calça Lee desbotada e um inseparável poncho peruano, eu era uma perfeita ET naquela cidade atemporal, esquecida num desvão qualquer do pós-guerra, onde não havia sonho de consumo mais inatingível do que jeans como os que eu usava -- e por causa dos quais era parada nas ruas diversas vezes, por gente disposta a comprá-los a todo custo.
É difícil imaginar isso no mundo globalizado de hoje, em que quinquilharias chinesas competem com cacarecos coreanos em qualquer camelô, e onde se pode importar de tudo, de toda a parte, sem sair do computador; mas na Budapeste comunista dos anos 70 não havia jeans nas lojas.
Aliás, não havia praticamente nada nas lojas. Lembrando bem, quase não havia lojas.
As exceções eram as confeitarias gloriosas e as livrarias, onde livros e LPs, subsidiados pelo governo, custavam uma ninharia. Infelizmente, sempre fui analfabeta em húngaro, que só consigo ler em voz alta, soletrando as palavras, para que, uma vez ouvidas, possa enfim compreendê-las. Isso funciona com placas de rua e eventuais manchetes de jornal, mas é impraticável para qualquer coisa além disso; de modo que os livros ficaram todos lá.
Mas, como eu ia dizendo, só eu sabia que, por baixo da imagem de estrangeira exótica, morava uma criatura que entendia bastante bem o que se dizia à sua volta. Um dos meus prazeres era me sentar num café e ficar ouvindo o que os húngaros, convencidos da ininteligibilidade do seu idioma, achavam daquela evidência ambulante da decadência do mundo ocidental.
Os mais velhos ficavam horrorizados, os mais jovens, com inveja; e todos, sem exceção, faziam as suposições mais estapafúrdias a respeito das minhas origens. Esta era a parte de que eu mais gostava, até porque, como esfinge, fazia um bonito, vindo, na verdade, de lá mesmo.
Eu tinha 24 anos e a vida era bela.
Além do húngaro, guardávamos outros segredos em casa: os escritores húngaros, muitos dos quais haviam sido amigos de meu Pai. Nomes como Petöfi, Arany János, Ady Endre, Attila Jozsef, Karinthy, Molnár, Krúdy Gyula ou Sándor Márai eram tão comuns na conversa quanto, digamos, Drummond ou Guimarães Rosa. Mas, como a língua, eram só nossos. Papai nos falava deles e nos lia seus contos e poemas, prestando socorro aqui e ali com a tradução de uma palavra mais complicada.
Pois eis que, de uns tempos para cá, começaram a aparecer nas livrarias alguns destes velhos conhecidos, vestidos em edições caprichadas e assumindo ares de best-sellers. A sensação que tive ao topar com um primeiro Márai na Argumento não foi muito diferente da que senti ao pisar em Budapeste em 1977. Como, os "meus" escritores, ao alcance de todos?! Lá se ia mais um segredo de família...
Por outro lado, este súbito interesse pela literatura húngara vem me dando grandes alegrias. Pude finalmente ler romances dos quais apenas tinha ouvido falar, fiquei apaixonada por Sándor Márai, um dos escritores mais envolventes que conheço, e, há dois meses, tive a felicidade de ver "Os meninos da rua Paulo" chegar às livrarias em toda a sua glória.
Ao longo de toda a vida acompanhei o destino deste livro, tão amado por meu Pai e por ele traduzido um ano antes do meu nascimento. Tudo o que Papai queria era que outros pudessem ter o mesmo prazer que ele havia tido com a leitura do seu Molnár favorito; a certeza de ter alcançado este objetivo se renovava sempre que alguém lhe falava dele, o que acontecia constantemente, apesar das edições acanhadas e feiosas a que o livrinho parecia condenado.
Acontece que, como um patinho feio, "Os meninos da rua Paulo" realizou o sonho de todo livro, e foi parar no catálogo da CosacNaify -- de onde alçou vôo, como o belo cisne que é, para as boas casas do ramo.
O que não faz uma edição carinhosa! Ele está, finalmente, tão bonito por fora quanto por dentro, tão bem cuidado editorialmente quanto bem cuidada foi a sua tradução.
Que seja muito feliz este meu irmãozinho na sua nova vida, e que conquiste muitos e fiéis leitores.
Ele merece.
(O Globo, Segundo Caderno, 11.8.2005)
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