A angústia da cronista diante da página
A crise política seqüestrou as atenções do país,mas o mundo continua cão aí fora
Madrugada de quarta-feira. Enquanto escrevo, Keaton, a gatinha da foto, dorme esparramada na escrivaninha, ao lado de uma pilha de livros que esperam que eu os leia; na mesma escrivaninha, há fotos ainda não editadas de um passeio de barco pela Baía de Guanabara, alguns cartões de parabéns pelo aniversário que ainda não respondi e uns CDs que preciso passar para o computador.
O conjunto é uma espécie de colcha de retalhos da minha vida, mas os cartões que deixei de responder, os livros que ainda não folheei, os discos que não ouvi e as fotos que nem pude ver dão conta de como esta vida está fora do ritmo, refém da crise política que insiste em tomar o tempo, o espaço e a alma da gente. Um dos aspectos mais desgastantes da CPMI é o seqüestro da nossa atenção; é como se não houvesse outro assunto, como se nada tivesse a menor importância diante do que está acontecendo em Brasília.
No dia em que alguém se der ao trabalho de fazer as contas do número de horas que o país gastou diante da televisão, indignado com o tenebroso espetáculo do poder, vamos todos levar um susto.
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Enquanto isso, a vida segue. Como os absurdos e abusos não se restringem ao noticiário de Brasília, há duas semanas recebo mensagens desesperadas de donos de cachorros supostamente ferozes que, de um momento para o outro, foram varridos das ruas, banidos da luz do sol. É um castigo medonho, que não se dá mais nem a monstros como um Fernandinho Beira-Mar; mas graças aos deputados Alice Tamborindeguy, Corry Pilar e Nilton Salomão, que alteraram para pior a já questionável lei do deputado Carlos Minc, centenas, talvez milhares de pitbulls, dobermans, rottweillers e filas estão condenados à noite eterna, proibidos de sair às ruas antes das 22h.A imensa maioria destes cães jamais fez mal nenhum a ninguém. São apenas cachorros, coitados, que não têm consciência da polêmica que os envolve; mas, de um momento para outro, viram suas vidinhas viradas pelo avesso, ficaram confinados, perderam a alegria de ver um dia claro.
Independentemente da opinião que se tenha a respeito deles, nada, absolutamente, justifica esta norma medieval. Até porque, agora eles só podem sair de casa com guia de condução curta, coleira com enforcador e focinheira.
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Dito isso, esclareço: como sabem os 17 leitores que o Xexéo me empresta às quintas-feiras, não sou especialista em cães. Talvez por isso, me incluo naquela parcela da população que não acredita em pitbulls mansos -- ou, melhor dizendo, mansos com todo mundo.Tenho, além disso, bronca com a quantidade de donos de pitbulls que, obviamente, criam os animais como armas; ainda que a maioria deles seja alegre e dócil como são os cães tratados com amor e respeito, é óbvio que nove entre dez psicopatas que precisam de cachorros para mostrar ao mundo como são machos preferem pitbulls. Isso é um grande problema.
Mas problema maior ainda é que, em todos os lugares onde certas raças de cães foram proibidas, os resultados não foram nada animadores. Houve abandono de cães, discriminação de proprietários e muita infelicidade. Criaram-se "mercados negros" para os bichos proibidos e outras raças foram escolhidas como símbolos de pretensa virilidade por pit boys imbecis.
Todos os ativistas de direitos animais com quem troquei idéias a respeito do assunto concordam: não são os animais que deveriam ser punidos, e sim os donos irresponsáveis. Crie-se uma legislação realmente severa, apliquem-se as penas da lei a tais donos, e logo os problemas das "raças ferozes" serão resolvidos.
Naturalmente, é muito mais fácil pôr três ou quatro raças na clandestinidade do que criar uma legislação inteligente e bem pensada. A dra. Andréa Lambert, presidente da Anida (Associação nacional de implementação dos direitos dos animais), resumiu a questão lá no blog:
-- Qualquer cão criado confinado e sem contato com pessoas pode ser um potencial agressor, independentemente de raça. E tentem fazer uma denúncia na Delegacia de Proteção e Meio Ambiente de um cão acorrentado ou de outro tipo de maltrato. O descaso é total. O poder público não tem interesse real em coibir os ataques de cães, pois a maioria acontece dentro das residências. As leis do pitbull e dos cães ferozes são simplista e inócuas. São boas para mídia e para esconder a verdade, que é a incompetência do poder público para lidar com a relação homem/animal.
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Comovido com a situação dos gatinhos do Jockey, que descrevi há algumas semanas, o dr. Wanderley Rabello Filho, da OAB-RJ, interessou-se pelo caso ? e descobriu uma prova cabal da incompetência a que se refere a presidente da Anida. O processo que rola na Justiça há dois anos contra o clube é, acreditem, uma obra de ficção! O Ministério Público simplesmente se "esqueceu" de fazer a denúncia contra o clube...Ou seja: papéis e mais papéis acumularam-se sobre nada, seguindo seu rumo a lugar algum. Pobres dos gatos. E, sobretudo, pobres de nós, tão mal servidos pelos funcionários que sustentamos!
(O Globo, Segundo Caderno, 4.8.2005)
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