A Paixão de Cristo: Nada no filme é relevante, a não ser a violência em estado bruto
Tortura explícita e muita fé... no marketing
Antes de assistir à “Paixão de Cristo”, eu já estava impressionada com a facilidade com que Mel Gibson montou a sua máquina de marketing; como foi criando as armadilhas mais transparentes; e como os alvos para os quais essas armadilhas foram montadas (mídia inclusive) nelas caíram obedientemente, sem pensar duas vezes. Aparentemente, aliás, sem sequer pensar. Agora, tendo assistido ao magnum opus de Gibson, minha admiração pelo marqueteiro não tem limites. Não é qualquer um que consegue transformar em assunto de primeira página um filme de quinta, sem vestígios de roteiro ou qualquer carga dramática; não é qualquer um que consegue criar uma polêmica religiosa a partir de um filme-pancadaria bizarro em que, contrariando todas as normas do gênero, apenas um dos lados apanha.
“A Paixão de Cristo” começa com a última noite de Jesus no Monte das Oliveiras. O clima é soturno e, sobretudo, muito, muito canastra. “Interpretação”, na cartilha de Mel Gibson, não é propriamente uma atividade sutil. Logo Judas vai receber os seus 30 dinheiros e, na seqüência, a guarda aparece para levar Cristo ao seu destino. É uma abertura tensa, que pressupõe que todos os espectadores conhecem, de cor e salteado, a sucessão de eventos que levou a este ponto. Isso provavelmente é verdade — mas, ainda assim, falta ao filme uma raiz histórica ou um mínimo de dialética que justifiquem o que acontece depois dos seus dez primeiros minutos: uma longa sessão de tortura explícita e contínua, de um mau gosto inenarrável. Para dizer pouco. Resultado: duas horas macabras de violência gratuita, com sangue aos borbotões, carne estraçalhada, pedaços de pele arrancados ou pendentes, costelas à vista. Enfim, como prova a bilheteria estratosférica, um programão para o público que cresceu apreciando Jason e Freddy Krueger.
Mais um vendilhão no templo
Diante de violência tão repulsiva, é impossível entender o porquê da celeuma religiosa — até para a judia que vos tecla. Nada neste filme é relevante, a não ser essa violência em estado bruto, ampliada nos closes, esmiuçada nos detalhes, nojenta em todos os sentidos. Que ninguém se iluda: ela, e apenas ela, é o grande ponto de venda do filme.
O que incomoda além de qualquer medida não é como os judeus ou os romanos ou mesmo os discípulos são apresentados, mas sim a hipocrisia que transveste de fé a exploração do que a Humanidade tem de pior, para não falar no descarado comercialismo que mal se disfarça por trás da iniciativa supostamente “nobre”.
Se a motivação de Mel Gibson fosse de fato religiosa, a primeira coisa a fazer seria expulsar os vendilhões do templo, e não se juntar a eles, colhendo os frutos do merchandising duvidoso de cravos e canecas, coroas de espinhos e camisetas; ou, então, aceitar a palavra de Jesus, que falava em amor, e não em violência. Já se a idéia básica fosse mostrar à Humanidade o verdadeiro sofrimento do Cristo, o filme seria exibido gratuitamente, como são gratuitamente distribuídos tantos milhões de bíblias pelo mundo afora; ou, no mínimo, passaria a ser gratuito, ou quase isso, assim que Gibson, o Evangelista, tivesse recuperado o seu investimento inicial de US$ 30 milhões. No momento, porém, ele já está num lucro de US$ 70 milhões — e, aí, não há como não concordar com Millôr Fernandes, que desconfia de todo idealista que lucra com o seu ideal. Ainda mais na primeira semana de lançamento.
Ao sair do cinema, o Bonequinho cantarolava o samba da Viradouro: “Ó, Virgem Santa, rogai por nós, rogai por nós, ó Virgem Santa, pois precisamos de Paz, ó Virgem...”
Louco por uma dose de Zeffirelli.
(O Globo, Segundo Caderno, 14.3.2004)
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