17.2.11

40 anos



Tive a minha crise dos 30 anos aos 40: Freud há de ter explicação para isso. Foi feia a coisa. Achei que a vida tal qual a vivia terminava ali, que nada mais me aconteceria de emocionante, que as possibilidades de aventura estavam esgotadas e todas aquelas besteiras que a gente mete na cabeça quando tem imaginação demais e bom senso de menos.

Dado que a vida estava encerrada, decidi que, antes de me dedicar de vez ao tricô e ao crochê, estava na hora de 1) aprender a mergulhar e 2) gastar as minhas economias todas, que não eram muitas, mas dariam para comprar um carro. Mas quem queria carro?! Comprei, em vez disso, uma pilha de guias de viagem, e fui para a internet, que já existia na época mas não como a conhecemos hoje, e por telnet e outras ferramentas antediluvianas saí pesquisando o mundo. Descobri que os cursos de mergulho franceses eram os melhores, o que foi uma alegria, porque me parecia que as ilhas francesas também o eram; e que o ideal era ir para o Caribe, que fica logo ali. Saint Barth era o que havia de chique, mas, justamente por isso, não me servia: sempre acho que caí no lugar errado quando chego no que há de chique, e a verdade é que caio mesmo.

Saint Martin, em compensação, parecia perfeita. A parte holandesa era sucateada, mas a francesa tinha vida própria: uma pequena aldeia gaulesa cercada de água salgada. Em Grand Case havia inclusive vários restaurantes de chefs que, cansados da rotina parisiense, tinham optado por uma vida mais calma. Por coincidência, em St-Martin  funcionava também a escola de mergulho mais recomendada pelo pessoal da internet, a Scuba Fun Caraïbes (sim, eles também têm mania de dar nome em inglês aos seus estabelecimentos).

Procurei uma agência de viagens, onde, pela primeira e única vez na vida, comprei uma passagem de primeira classe – coisa que só alcanço, de vez em quando, a custa de milhagens. Pedi para ficar no melhor hotel, e nas seguintes circunstâncias: se eu caísse da cama, tinha que cair na areia. Resolvidas essas questões básicas, juntei dois períodos de férias acumulados, fiz as malas e fui embora.

O aeroporto de St-Martin, que talvez seja um dos mais fotografados do mundo, é uma sensação: o avião aterrissa praticamente na praia. Quando desembarcamos, fizeram-se duas filas na imigração, a do pessoal que ficaria em St-Martin, e a do  que seguiria para St. Barth. Na primeira, um povo parecido comigo, mais puxado pro hippie fino; na segunda, muito salto alto, muitas mulheres espetaculares, muitas bolsas e malas de griffe. Fiquei feliz por estar na fila certa.

Seguindo o conselho de um amigo de internet, aluguei o menor carro que encontrei; por incrível que pareça, já naquela época havia engarrafamentos em St-Martin  e achar estacionamento era um problema.

O hotel era realmente lindo e, dito e feito, meu quarto ficava exatamente em frente ao mar. A única coisa que me separava da praia era uma pequena varanda. Logo liguei para a Scuba Fun e, no dia seguinte, estava devidamente matriculada na escola. Aprendi a mergulhar em uma semana. O resto do tempo passei fazendo mais e mais divertidos mergulhos, tirando outros certificados, indo e vindo de ilhas vizinhas. Fiz bons amigos na ilha, dos instrutores e alunos da escola, ao padre da paróquia de Marigot.

Descobri o padre por acaso. Uma das estações de rádio locais que eu ouvia no carro era fantástica, só tocava música clássica e música clássica bem escolhida. O locutor tinha uma voz de anjo e fazia excelentes comentários. Um dia parei numa venda onde o rádio estava sintonizado nessa estação, e comentei com o dono a qualidade do que ouvíamos.

-- Essa é a rádio do padre, -- disse ele. – Vá à igreja conhecê-lo, é uma figura.

Fui. O reverendo Cornelius Charles, originário das Bahamas e azul de tão negro, era um homem imponente e gentil. Disse que conversaria sobre a rádio com todo o prazer, desde que eu assistisse à Missa no domingo. Expliquei que, não acreditando em nada, não faria sentido para mim ir à Missa, mas ele insistiu:

-- Você vai gostar.

Pois tinha razão: gostei mesmo. Acontece que mais da metade da missa era cantada pelo próprio padre, uma das melhores vozes que já ouvi, em qualquer lugar. Depois jantamos juntos na casa paroquial, servidos por duas freiras sorridentes, e ele me contou a história da rádio, que fica para outro dia. Dali em diante, sempre que estava nas vizinhanças, parava na igreja para um café e dois dedos de prosa.

Deixei St-Martin  com muitas saudades. Voltei à ilha várias vezes, para mergulhar, rever os amigos e comer em Grand Case. O reverendo Cornelius Charles, porém, foi transferido para Guadaloupe, e eu nunca mais soube dele.

* * *

Essas lembranças me voltaram porque, na segunda passada, o Paulinho, meu filho, fez 40 anos. Não posso dizer que tenha sido uma surpresa -- eu estava lá quando ele nasceu, e me lembro da data -- mas foi, sem dúvida, um choque e tanto. Paulinho com 40 anos?!

Está na hora de tomar uma atitude! O pior é que mergulhar eu já mergulhei, gastar o dinheiro já gastei... Talvez o melhor mesmo seja ficar quieta no meu canto, curtindo a felicidade e o orgulho de ter produzido um bípede tão generoso, íntegro e batalhador.     

Ou, enfim, aprender tricô.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.2.2011) 


PS -- A foto dessa semana é do Paulinho, e a modelo é a Alicia.

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