8.10.10

O sentido da vida, segundo As Cobras












As crianças que nasceram quando Luis Fernando Veríssimo parou de desenhar “As Cobras”, em 1997, já andam, já falam e já perguntam qual é o sentido da vida. Para quem acompanhava a dupla de répteis mais bem pensantes do planeta desde que estrearam, as Cobras saíram de cena no outro dia, e deixaram imensas saudades. Agora, para consolo dos fãs, chega às livrarias “As Cobras, antologia definitiva”, edição caprichada de quase 200 páginas e 470 tirinhas, que reúne o melhor do serpentário. Mas chegar a esse número não foi fácil, como explica Isa Pessoa, da Editora Objetiva:

-- Em quase 30 anos, Verissimo deve ter desenhado mais de duas mil tiras, já que elas começaram a ser publicadas aos domingos, e depois passaram a ser diárias, ou quase, -- diz ela. -- A Fernanda Verissimo (filha de Luis Fernando) nos ajudou muito, porque conhecia bem o material e chegou a fazer uma primeiríssima tiragem. De qualquer forma, quando as caixas chegaram aqui na editora, tentamos traçar o mapa das cobras. Por onde elas andaram e onde deixaram seus rastros impagáveis? Assim definimos o roteiro, editando o material por blocos, que procuram recriar as fixações da dupla.

As Cobras nasceram na Folha da Manhã, de Porto Alegre, em plena ditadura militar; além de divertir o distinto público, tinham a delicada missão de passar o recado nas entrelinhas. O regime da época, além de achar que a imprensa abusava do direito de informar, não tinha qualquer pudor em eliminar o que lhe parecia manifestação de mídia golpista. Jornalistas e humoristas trabalhavam numa fronteira delicada, a um passo do censor.

Os desenhos tinham melhor sorte do que os textos. O humor gráfico tem uma conotação lúdica, infantil – e 
parecia, talvez, menos ameaçador do que o seu irmão escrito. Ou, como observa Veríssimo, também é possível que os censores entendessem ainda menos os desenhos do que os textos. Assim é que a trupe das Cobras conseguiu serpentear livre, leve e solta entre tesouras e teorias conspiratórias. E, por incrível que pareça, conseguiu se manter atual até os dias de hoje.

-- As tiras políticas, ao contrário do que imaginávamos, não envelheceram, -- diz Isa Pessoa. -- Nossa preocupação era manter a piada e não perder o leitor, mas a crítica das cobras se concentra no ato político e seu contexto, como a corrupção, o tormento das eleições, e assim por diante -- portanto, eliminadas as tiras que eventualmente citavam uma campanha ou personagem específico, quase todas se mantêm atuais. Outras obsessões da dupla, como o fim do mundo, Deus, o futebol, o espaço, a praia, foram contempladas em separado -- as cobras emitem opinião sobre tudo, como sabemos, mas seria um desperdício perder algum veneno sobre temas que lhe são mais caros... Assim, a preguiça para o banho frio ou a angústia diante do universo mereceram blocos à parte, como o que abre o livro, "As cobras existencialistas".

Por que cobras? Porque são fáceis de desenhar, “só pescoço”, como diz o autor, que se considera mau desenhista, apesar do sucesso dos seus cartuns e da tirinha Família Brasil, que continua em cartaz até hoje na “Zero Hora” e no “Estadão”, aos domingos. Embora Luis Fernando Veríssimo ache que as primeiras cobras eram horrorosas e muito mal ajambradas, elas viraram xodó dos leitores assim que saíram do ovo.

Em 1977, ganharam uma primeira antologia (As Cobras e outros Bichos, L&PM), mas nem por isso ficaram blasées. A essa altura já tinham ultrapassado as fronteiras do Rio Grande do Sul e eram curtidas no país inteiro, mas continuaram gentis e perplexas, questionando o mundo à sua volta e dividindo o espaço da tirinha, generosamente, com uma galeria de personagens inesquecíveis, como o Queromeu, o corrupião corrupto, Dudu, o alarmista, Sulamita, a pulga lasciva... As Cobras só eram perversas com as minhocas, a quem espezinhavam sem dó nem piedade: ”Sabe qual é a diferença entre uma minhoca e uma serpentina? A serpentina pelo menos é útil uma vez por ano.” Às minhocas, completamente destituídas de amor próprio, só restava suspirar.

As cobras sobreviveram à ditadura, mas não aos 60 anos do Luis Fernando Veríssimo, que achou que não pegava bem um senhor sexagenário a desenhar cobrinhas. Em 2006, por ocasião do lançamento da “Terra Magazine”, elas ressuscitaram brevemente, para alegria dos fãs – mas logo se recolheram novamente ao silêncio, de onde, a julgar pela disposição do autor, não sairão tão cedo.


Uma entrevista com LFV

O Globo -- Quando você parou de fazer as Cobras disse que não pegava bem um senhor sexagenário desenhando cobrinha. Pois agora que é avô, e com certeza faz coisas mais ridículas do que desenhar cobrinha, temos alguma chance de vê-las ressuscitadas?

LFV -- É, avô perde tudo: senso do ridiculo, super-ego... O que a Lucinda pedir eu faço, dentro de certas limitações físicas. Mas Cobras antigas estão saindo semanalmente, às segundas, no Terra Magazine do Bob Fernandes.

O Globo -- Você não sente saudades das Cobras? Não sente nenhum remorso por tê-las abandonado?

LFV - Na verdade, não. Apesar de fáceis de fazer, as Cobras davam trabalho. Muitas vezes quando chegava no fim do dia e eu achava que já tinha feito tudo que precisava fazer, me lembrava: faltam as cobras. Meu objetivo na vida, agora, é ir trabalhando cada vez menos até pegar no sono eterno.

O Globo -- Quanto tempo levava a criação física de uma tirinha?

LFV -- Variava muito. Às vezes eu fazia muitas de uma penada, às vezes era a última coisa do dia. Quando a idéia estava pronta o desenho saía ligeiro. Mas a idéia nem sempre chegava.

O Globo -- De todos os personagens da tirinha, havia algum que fosse o seu favorito, ou que você simplesmente gostasse mais de desenhar?

LFV -- Eu gostava das cobras recém-nascidas, que saiam da casca e iam descobrindo onde tinham vindo parar. Teve uma que já chegou com um habeas-corpus preventivo, por via das dúvidas.

O Globo -- Qual é a sensação que você tem vendo as Cobras reunidas em antologia? Gosta do desenho, das idéias, das lembranças da época?

LFV -- Felizmente, as primeiras cobras, as originais, não foram incluídas na antologia. Eram horrorosas, muito mal desenhadas. Depois foram ficando mais caprichadas, mais redondas. Quem prestar atenção no desenho pode notar como elas foram mudando com o tempo. Mas o desenho nunca deixou de ser elementar. Quanto a saudades da época, tenho saudade de ter 20 anos menos, mas não necessariamente daquele Brasil.

O Globo -- O seu email antigo não era cobras-alguma-coisa? O nome foi escolhido por carinho aos personagens?

LFV -- Olha, eu acho que nem fui eu que escolhi o nome.

O Globo -- Você já disse que desenhar é muito mais conveniente do que escrever, para preencher coluna do jornal. Continua valendo? Alguma possibilidade de um dia a gente abrir O Globo e ver um desenho seu em vez de texto, lá na página de Opinião?

LFV - Ninguém fez isso melhor do que o Millôr, naquele quadrado do JB. Mas acho que ali no Globo não cabe. Ainda mais se você não for um Millôr. Uma das razões para fazer as Cobras era que, na época em que elas nasceram, você podia dizer mais com desenho do que com texto. Desenho tinha aquela conotação de coisa ludica, infantil, e era conveniente para driblar a censura. Não que as cobras fossem grandes contestadoras, mas sempre passavam alguma coisa.

O Globo --  A filosofia das Cobras é a negação ou o resumo do Pensamento Ocidental?

LFV -- Na medida em que o que nos domina é uma grande perplexidade, as Cobras representam, sim, o Pensamento Ocidental. Principalmente diante do Universo infinito, que elas decididamente não aceitam, pelo menos não sem reclamar.

Alguns personagens







Queromeu, o corrupião corrupto: descarada ave cada vez mais comum na paisagem política brasileira. Queromeu rouba sem qualquer sentimento de vergonha, e é grande defensor dos valores familiares.

Sulamita, a pulga lasciva: Ninguém jamais viu Sulamita. A gente só vê o que ela diz ou o que pensa – e Sulamita só pensa naquilo. Quando pega um vírus, então, é uma loucura.









Shirlei e Flecha: Se Flecha valesse a metade do que acha que vale, seria um leão ou, no mínimo, um dragão de Comodo. Mas é apenas uma lesma. Felizmente tem a companhia de Shirlei, que ajuda a manter o seu ego nas alturas.


Felipe, o sapo romântico: Tudo o que ele precisa é de um beijo para voltar a ser príncipe, mas quem diz que o mulherio cai nessa? Enquanto não aparece ninguém, ele vai comendo umas moscas aqui e ali.








Dudu, o alarmista: Cobra apavorada com tudo, de cabelos permanentemente de pé, Dudu, típico personagem dos anos de chumbo, em que boatos podiam significar coisas sérias, está defasado. Hoje ninguém se assusta com mais nada.

Tia Jibóia: Vive de regime, coitada. Ou deveria viver, mas não resiste à tentação. Coitados dos nutricionistas! E dos bois, das vacas, dos recenseadores e quem mais chegue perto...


(O Globo, Segundo Caderno, 3.10.2010)