7.10.10

E la nave va




No domingo passado o Fantástico trouxe matéria instruindo as novas gerações a se prepararem para o futuro. Juntem dinheiro, cuidem das articulações, façam exercício. Concordo com tudo. Fui uma jovem completamente imprevidente, sou uma senhora bastante imprevidente, e às vezes tenho ataques de pânico quando penso no que o futuro me reserva. Mas, a par disso, orgulho-me de ter acumulado uma bela caderneta de poupança emocional.

A caderneta de poupança emocional é assim: na medida das possibilidades, a gente vive o máximo de aventuras e felicidades, e faz o que gosta e o que tem vontade. Conheci muita gente divertida, fui a uma quantidade de espetáculos, mergulhei, viajei sempre que pude. Um dia, quando estiver velhinha e não tiver mais dinheiro e/ou disposição para pular no primeiro avião e ir para um lugar exótico e desconhecido, bastará folhear mentalmente a caderneta de poupança emocional e pescar lá de dentro um acontecimento bom. Isso supondo, naturalmente, que me sobre memória para tanto...

* * *

 A caderneta de poupança emocional não é só uma providência que se adota em relação ao futuro. Ela também ajuda muito no presente, e pode ser uma auxiliar poderosa na prevenção de ataques de depressão. No domingo mesmo, aquele em que o Fantástico deu o sacode geral, eu estava de olho na televisão acompanhando o resultado das eleições. Fiquei muito feliz com a votação mais que expressiva da Marina, de quem sou fã assumida, mas cada vez que os comentaristas falavam nos campeões de votos do país, a minha vontade era me enfiar embaixo do sofá, e começar a chorar, de pura vergonha.

Mas debaixo do sofá estava frio, em cima do sofá estava quentinho e, além disso, já passei da idade de derramar lágrimas por causa de política. De modo que peguei a minha caderneta de poupança metafórica e fui atrás de uma boa lembrança. Não precisei ir muito longe – há pouco mais de um mês eu estava na península escandinava, aquela parte do mundo onde tiririca não existe nem como mato, e onde todas as necessidades básicas do ser humano já foram resolvidas – exceto, talvez, o tédio absoluto.

Já escrevi sobre a viagem, vocês lembram. Eu estava com Mamãe, que faturou todas as medalhas no Mundial de Natação Masters e, terminado o campeonato, embarcamos num mega navio de cruzeiro pelos fjords da Noruega. Foi a minha primeira experiência com a modalidade e será provavelmente a última, não por culpa do navio, que tinha todos os luxos que se esperam da espécie, mas porque prefiro ficar em terra firme, explorando ruas e cantinhos na paz do senhor, em vez de zarpar correndo para o próximo porto.

O contraste entre a silenciosa paisagem de cartão postal dos fjords e o interior do Costa Atlântica, o navio em que estávamos, não podia ser maior. O navio tem, como eu disse, tudo a que têm direito os navios de cruzeiro -- e, como se isso não bastasse, é dedicado a Fellini. É o over do over multiplicado algumas vezes por si mesmo, numa profusão de texturas, dourados, muranos e madeiras trabalhadas. A primeira impressão de quem vê o hall principal é a de ter caído numa máquina de pinball, de tantas  luzes, brilhos e cores. Levei um susto quando vi aquele exagero, mas o Paulinho, que é veterano em cruzeiros, me explicou tudo:

-- Mamãe, -- escreveu ele -- o espiríto da coisa é exatamente esse. Os navios são decorados dessa forma para você se lembrar, o tempo todo, que está em outro mundo. De férias. Longe de casa. Daí, eles te enchem de comida gostosa, te dão uma cama ótima, e a mágica se completa. Já fizemos cinco cruzeiros, cada um em um navio diferente. Cada um mais extravagante que o outro.

Bom. Eu conseguiria me lembrar de que estou longe de casa com metade da decoração do Costa Atlântica, mas depois de uns dias os excessos passam batidos quando a gente passa batida por eles. E, uma vez que se consiga esquecer o décor, a experiência é muito agradável. Os funcionários são prestativos e gentis, a comida é ótima, a cabine é confortável e bem pensada do ponto de vista da arquitetura, as camas são boas e o chuveiro ótimo. E, maravilha das maravilhas, a gente só tem notícias do Brasil se quiser.

* * *

Já vi muitas comparações de navios com cidades flutuantes, mas depois de ter passado uma semana observando a eficiência com que é gerenciado um navio desses, não sei não. Observei que sempre que atracávamos, times de pintores e faxineiros iam cuidar de detalhes aparentemente irrelevantes do lado de fora da embarcação. O casco é pintado permanentemente. Do lado de dentro, o cuidado é, se possível, ainda maior: tudo é polido, encerado e consertado 24 horas por dia. Não há um buraco no chão, uma faixa mal pintada, uma grade enferrujada.

Não sei que cidades (e que navios) conhecem as pessoas que comparam uns e outros, mas nunca vi cidade que funcione como um navio. Geiranger, Stavanger, Flam e as outras cidadezinhas em que paramos durante o cruzeiro chegam perto; mas se o Rio, por exemplo, fosse um navio, já teria ido a pique há muitas luas.

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Outro espanto é a competência da tripulação. Todos são extremamente capazes, e trabalham incansavelmente. Os camareiros e faxineiros às vezes até chegam aos empregos por recomendações de primos, amigos ou irmãos que já trabalham no navio mas, uma vez contratados, têm que mostrar serviço, ou, reza a lenda, são desembarcados na primeira ilha deserta com uma garrafinha de água e um facão para construir uma casa (civil?) com folhas de bananeira.

Hmmmm. Pensando bem...


(O Globo, Segundo Caderno, 7.10.2010) 

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