10.9.10

Shakespeare em versão "faça você mesmo"



Atenção, jogadores de sudoku! Há um novo passatempo na praça, muito mais interessante do que o seu brinquedinho de números: escrever sonetos. Quem aponta para essa conclusão surpreendente é o cineasta, escritor, tradutor, ex-jogador de sudoku e homem de sete instrumentos Jorge Furtado:

-- Para começar, o soneto é feito com palavras, muito mais simpáticas que os números. Depois, você há de convir que levar meia hora para escrever 152843796 é uma perda de tempo considerável. O que significa 152843796? Absolutamente nada, não serve nem para jogar no bicho. Compare 152843796 com “Nada como o sol são os olhos da minha amada”. E então?

Mais notável ainda é que, ao fazer essa proposta, Jorge Furtado não está pensando num soneto qualquer. A comparação com o sudoku é a introdução da mais nova edição dos “Sonetos de Shakespeare”, agora em versão “Faça você mesmo” (Editora Objetiva, 124 páginas).

-- O soneto – continua Furtado – é, está provado, muito mais bonito do que o sudoku. E é muito mais difícil de fazer e muito mais difícil de tentar.

Um grupo de amigos do diretor concordou com a premissa, e lançou-se de corpo e alma à tradução dos sonetos de Shakespeare, até para provar que a obra do bardo não é nariz de santo. Ao contrário dos que a imaginam empalhada para sempre na estante dos elizabetanos, tossindo segundas pessoas do plural a torto e a direito, ela está viva e bem, e comparece agora nas ilustres e divertidas companhias, entre outras, de Aderbal Freire Filho, Wagner Moura, Fernando Meirelles, as Fernandas Torres e Veríssimo (esta última em dupla com a irmã Mariana), Guel Arraes, Lazaro Ramos... é uma longa lista.

-- O jogo proposto por Jorge era que cada um de nós traduzisse, à sua maneira, um dos sonetos, -- diz Lázaro Ramos. -- Sempre que o Jorge falava sobre os cálculos da métrica do soneto, e sobre a sua quantidade de versos, eu pensava na tradução exatamente dentro dessa formula, já que era um jogo. Demorei um mês e meio e ainda assim foi uma dificuldade! Mas o melhor é que a busca, mais do que o resultado, acabou sendo muito enriquecedora. As conversas com o dicionário e as reflexões a respeito do que cada palavra ou verso queriam dizer fizeram com que eu aprendesse muito.

Nem todos levaram a questão da métrica tão a sério. Fernanda e Mariana Veríssimo, filhas do Luis Fernando, atacaram o Soneto 19, em que o poeta pede ao tempo que poupe as feições de sua amada, e foram fundo na iconoclastia. Dobraram o número de versos e capricharam nos anacronismos, mas traduziram com perfeição o espírito do poema, trazendo até o Brasil de 2010 o sentido do que Shakespeare escreveu no Século XVI.

-- Fiquei meio constrangida em por “Miss Venezuela” no meio do Shakespeare, -- confessa Fernanda, que mora em Porto Alegre, está na reta final da tese de doutorado e fez sua tradução por meio de uma intensa troca de emails com a irmã Mariana, em São Paulo. – Mas, como é uma versão pop, fica valendo.

Como seus colegas de desafio, ela também destaca a intimidade que ganhou com os sonetos como um dos melhores aspectos da história, que começou como brincadeira doméstica da família Furtado.

-- Sempre fui apaixonado pelos sonetos, desde que li a tradução do Ivo Barroso, -- diz Jorge. -- Tenho gravações com vários atores ingleses, ouço como se fosse música. Mesmo quando não se entendem todas as palavras, a sonoridade dos sonetos é incrível. Quando meu inglês começou a ficar melhor, comecei a traduzir os sonetos que o Ivo não traduziu. Fiquei deslumbrado ao perceber as várias versões possíveis. Os meus filhos Pedro e Julia (de 26 e 24 anos, respectivamente) começaram a se interessar e a dar sugestões; e logo estavam traduzindo também. Aí pensei, porque não espalhar isso entre os amigos?

Salvo Caetano Veloso e Adriana Calcanhoto, que ficaram assustados com a responsabilidade, os demais convocados caíram dentro com entusiasmo e, em alguns casos, passaram adiante para outros amigos, numa espécie de corrente:

-- Recusei muito, tentei não fazer, mas o Jorge insiste nos amigos – lembra Fernanda Torres. -- Tenho pânico de tradução, cada palavra que você usa abre um arbusto de possibilidades... e o pior, com poesia, é que você ainda tem que achar a rima! A primeira versão que eu fiz foi uma coisa meio “The cow went to the swamp”. Mandei pro Jorge, que me mandou de volta dando um toque: “Olha, Nanda, existe uma coisa chamada métrica...”

Cada um dos convocados pode escolher um soneto para traduzir. Essa liberdade de ação fez com que alguns sonetos acabassem sem tradução, ao passo que outros tiveram várias interpretações: o Soneto 23, por exemplo, ganhou versões de Aderbal Freire Filho, Fernando Meirelles e Clarice Falcão. É muito interessante ver como cada um enfrentou, à sua maneira, as mesmas dificuldades.

-- Na verdade, cada pessoa que faz uma tradução faz um soneto novo -- diz Jorge Furtado, que não se incomodou em deixar alguns poemas sem tradução na antologia. – Como a idéia é convocar os leitores a fazerem suas próprias traduções, ter um ou outro soneto não traduzido ajuda àquelas pessoas que, eventualmente, poderiam se sentir intimidadas por uma tradução já existente.

A ajuda ao leitor é uma constante no livrinho, a começar por uma pequena aula de Liziane Kugland sobre a arte do soneto, em que métrica, rima e ritmo são explicados, a um glossário de termos do inglês elizabetano, também elaborado por Liziane, e uma lista de referências úteis na internet. “Sonetos de Shakespeare faça você mesmo” dá até papel para o leitor se aventurar – ao lado de cada poema, há uma página pautada com espaço para que o candidato a tradutor registre a sua versão. Só fica faltando mesmo o lápis com borrachinha, mas isso, afinal, nem as revistas de sudoku oferecem.

Finalmente, vale lembrar que é tudo por uma boa causa. Como lembra Lázaro Ramos, embaixador do Unicef, os direitos autorais do livro foram doados ao fundo, e serão aplicados em programas de incentivo à leitura.


(O Globo, Segundo Caderno, 9.9.2010)

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