16.9.10

As peças da engrenagem



A cidade chinesa de Dongguan, no delta do rio Pérola, fica a uma travessia de barca da fervilhante Hong-Kong, mas a uma distância incomensurável das aldeias vizinhas, de onde vem o grosso da sua população. Dos seus quase sete milhões de habitantes, mais de cinco milhões saíram do campo, onde a vida pouco mudou ao longo dos séculos.

Muitos desses migrantes deixam a zona rural ainda adolescentes, fugindo da miséria e da falta de possibilidades dos vilarejos. Na cidade, adotam rapidamente novos costumes e transformam-se em mão-de-obra escrava – ou quase isso. Vários chegam a perder os próprios nomes, já que, para burlar a fiscalização que proíbe o trabalho de menores, usam carteiras de identidade de parentes ou amigos mais velhos.

Lu Qingmin, por exemplo, saiu de casa aos 16. Com dois anos de curso técnico, além do ensino básico, era uma das pessoas mais bem preparadas da sua aldeia. Ainda assim, por causa da idade, teve que aceitar o primeiro emprego que apareceu, numa fábrica de eletrônicos. A jornada de trabalho ia das oito da manhã à meia-noite, era proibido conversar na linha de montagem, as folgas eram raras e o salário mensal não passava de 50 dólares, sendo os dois primeiros meses retidos pela fábrica a título de “garantia”, para evitar o abandono do emprego antes de um ano de serviço. No alojamento infecto, cada quarto era dividido por 12 operárias; a alimentação era ruim e insuficiente.

Depois de dez meses massacrantes, Lu Qingmin abandonou o emprego e, graças à sua boa caligrafia, conseguiu se livrar da linha de montagem. Foi contratada como auxiliar de escritório em outra fábrica, trabalhando “apenas” dez horas por dia, e ganhando cem dólares mensais. As condições do alojamento, onde cada quarto era dividido por oito operárias, também eram melhores, assim como a comida. Mais tarde, trocou essa segunda fábrica por uma terceira, e assim sucessivamente, até chegar a um salário menos cruel.

Lu Qingmin é uma das personagens que Leslie T. Chang acompanha em “As garotas da fábrica” (Intrinseca, 373 páginas, tradução de Clovis Marques), um dos melhores livros da temporada, mais empolgante do que qualquer obra de ficção. Americana de origem chinesa, fluente em mandarim, Chang foi correspondente do “Wall Street Journal” em Pequim durante dez anos, e na sua busca pelo lado humano do crescimento econômico da China, passou três anos indo e vindo de Dongguan, onde alugou apartamento, visitou fábricas com mais de 70 mil funcionários e conheceu incontáveis moças como Lu Qingmin, que entram e saem do livro como entram e saem dos empregos e das vidas umas das outras.

Num lugar como Dongguan, onde nada é permanente e tudo muda mais rápido do que se pode perceber ou registrar, a coisa mais fácil do mundo, diz Chang, é perder alguém de vista. Pessoas vão e vêm e, na maioria das vezes, ninguém sabe nada a respeito de ninguém, exceto o nome (frequentemente falso) e um número de telefone. Quando um celular é perdido ou roubado, por exemplo, todas as relações desaparecem junto com ele, e é preciso começar a construir um novo círculo social a partir do zero. Leslie Chang ficou frustrada por perder de vista diversas entrevistadas, mas, não obstante, conseguiu traçar alguns perfis notáveis.

A própria Dongguan, pautada pelos horários e necessidades das fábricas, adquire, em seu livro, dimensões de personagem. Durante o dia, quando os migrantes estão sendo esfolados nas de montagem, lembra uma grande cidade fantasma, com as ruas desertas; à noite ganha vida, carrocinhas de comida, camelôs, aulas de inglês e de informática para quem ainda tem energia depois da árdua jornada de trabalho.

Mergulhada em corrupção, é povoada por figuras sinistras que passam a vida aplicando golpes nos ingênuos migrantes roceiros, de professores que sequer falam as línguas que se propõem a ensinar a vendedores de produtos milagrosos, passando por empreendedores que trabalham em sistemas de pirâmides a empresários ligados a bordéis. Dongguan é, aliás, a capital chinesa da prostituição, carreira de tantas moças que não suportam o cotidiano das fábricas; como o mundo é muito mais igual do que diferente, elas exercem seu ofício em bares de caraoquê, salões de massagem, saunas...

Chang escreve com simpatia, sem tecer julgamentos. Acima das ásperas condições da vida em Dongguan, brilha a determinação das moças, com suas ambições, suas relações conflitantes com as famílias que deixaram para trás, seus namoros, seus sonhos, suas vitórias e derrotas. O mais extraordinário é que, apesar dos pesares, a vida na cidade ainda representa, para muitas delas, uma efetiva forma de ascensão social, e o único caminho para a liberdade.

Uma outra saga de migrantes atravessa a das garotas da fábrica, como uma espécie de livro dentro do livro: é a busca de Leslie Chang por suas raízes. As idas e vindas de sua família, vítima da Revolução Cultural, acompanham as idas e vindas da própria História chinesa. Já não há ninguém da família na antiga aldeia e a casa ancestral desapareceu, mas de fragmentos de memória se reconstrói, afinal, o que foi.

* * *

Vocês se lembram da mostra do cinema indiano contemporâneo na Caixa Cultural? Pois foi um sucesso tão grande que, além da sala inicialmente programada, ocupou também uma segunda sala – e, agora, vai ter repescagem na Cinemateca do MAM. A mini-mostra, com oito filmes no total, começa hoje, e vai até o próximo dia 26. A entrada é gratuita.


(O Globo, Segundo Caderno, 16.9.2010)

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