11.2.10

Padecendo no paraíso



A quarta-feira não foi o dia mais quente do ano mas, na própria quarta, antes que a quinta fosse ainda pior -- só perdendo para sexta, sábado e domingo -- ninguém tinha como saber disso. Às duas da tarde, quando saí do jornal, entendi como se sente um pargo ao sal grosso entrando num forno pré-aquecido. Repito o que escrevi há algumas semanas, quando, por incrível que pareça, ainda não sabiamos da missa a metade: nunca vi nada igual.

Fui atrás de taxi imaginando quanto tempo um ser humano poderia suportar aquele sol no quengo sem passar mal; e então me ocorreu que ali estava um fenômeno que eu não precisava imaginar. Era só sair andando para, cedo ou tarde, ter a resposta. Simples, não?

Virei a Irineu Marinho, subi a Rua do Santana e parei no botequim da esquina com a Frei Caneca para beber água e pensar numa estratégia de sobrevivencia. Não havia uma sombrinha decente à vista. Na verdade, não havia nem gente à vista: as poucas pessoas que enfrentavam a rua andavam rente aos prédios, para aproveitar os parcos centímetros de sombra existentes.

Continuei pela Frei Caneca, parando aqui e ali para fotografar os edifícios que foram restaurados, e que sempre me encantam. Depois General Caldwell e Moncorvo Filho. O Campo de Santana, tão convidativo visto de fora, estava cheio de tipos suspeitos escarrapachados pelos bancos, dormindo ou amontoados em grupos. Não tenho medo de gente, não acho que todo mendigo ou morador de rua faça jornada dupla como assaltante, mas também não vou facilitar para bandido em tempo integral com dedicação exclusiva.

* * *

Abre parenteses: de que adianta vivermos na cidade mais bonita do mundo quando ela nos pertence cada vez menos, e quando cada um de nossos passos é ditado pela insegurança? O Campo de Santana, plantado no coração do Rio, praticamente do lado da prefeitura e do 13º Batalhão da PM, devia ser, pela lógica, um dos lugares mais seguros da cidade, um oásis de tranqüilidade na confusão geral. Em vez disso, é uma praça pela qual se corta caminho, de preferência rápido. Fotografar é esporte radical, buscar o aconchego dos recantos de sombras e árvores antigas uma atividade de risco. Eu não queria falar sobre isso, mas é que passar por uma jóia como aquela e não sentir firmeza para tirar uma mísera foto de celular me revolta além do que consigo exprimir. Fecha parênteses.

* * *

Comprei duas águas a um real em frente ao quartel do Corpo de Bombeiros, e fui adiante. A essa altura a pele latejava, o relógio e a argola de metal da bolsa queimavam. As pessoas que esperavam no ponto de ônibus estavam até quietas. Continuei por algumas daquelas ruas pequeninas até chegar à Praça Tiradentes. Em frente ao João Caetano, as pálpebras e as mãos davam umas tremidas esquisitas.

-- Tá, Cora Rónai, ponto provado! Ou precisa ter um piripaque só para testar uma idéia idiota?

Decidi ouvir a voz da razão, tomei o primeiro taxi que apareceu e voltei para casa. O corpo estava tão quente que, mesmo depois de uma ducha fria, continuei suando por um bom tempo.

* * *

Nunca fui à África, mas andei por todas essas ruas tão minhas conhecidas como se estivesse em Dakar ou em Timbuktu. Além de minar a resistência, o calor alterava a realidade e, num certo sentido, o próprio comportamento dos transeuntes.

A maioria das pessoas por quem passei trocou olhares aparvalhados comigo, reflexo da cumplicidade entre vítimas do mesmo estupor incompreensível. Descrevi a experiência no blog, e o leitor Gledson Machado prontamente tuitou:

-- Olha, a @cronai escreveu um texto sobre o que passou no calor... Se ela andasse por Nova Iguaçu escreveria um livro!

* * *

O telefone tocou.

-- Cara, vou te contar, que droga que é fazer 60 anos, viu? – explodiu a minha amiga. – Sempre me disseram que a gente envelhece aos poucos, mas não é verdade, é de uma hora para outra, da noite para o dia. Que inferno!

-- O que aconteceu?!

-- Não aconteceu nada, mas eu não consigo mais andar nem duas quadras! Saí de casa para ir ao banco, e quando cheguei estava tonta, com falta de ar, a cabeça explodindo. Duas quadras! Que droga que é ficar velha!

Minha amiga usava termos mais eloqüentes do que esses. Estava genuinamente contrariada, com a auto-estima tão abalada pela insolação que nem se dera ao trabalho de analisar os vários ângulos da questão.

-- Você não está velha, criatura. Você está é desidratada: é diferente. Toma uma água de coco que passa.

* * *

A quinta-feira amanheceu pior do que a quarta, que amanheceu melhor do que a sexta e o sábado. No domingo, os termômetros registraram a temperatura mais alta do século, quiçá do milênio. A minha moral cai na mesma proporção em que a conta de luz sobe.

Levantar da cama e sair do quarto geladinho é uma dificuldade, trabalhar e resolver as mínimas coisas um esforço descomunal. Há dias me prometo fotografar amanhã, sem falta, a árvore da esquina da Maria Quitéria, que está toda florida. Entre a promessa e as flores, porém, há um muro de letargia que não consigo transpor. Telefono:

-- Bia, estou com uma depressão séria. Não estou com vontade de fazer nada, a não ser ficar no ar refrigerado.

-- Relaxa, mãe! Você não está com depressão. Você está com calor. Toma uma água de coco que passa.


(O Globo, Segundo Caderno, 11.2.2010)

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