25.2.10

O ano do tigre




A primeira vez que ouvi falar de uma pessoa viciada em sexo foi no começo dos anos 90, quando Michael Douglas, durante uma troca qualquer de estado civil, internou-se numa clínica para tratamento. Fiquei admirada. Já conhecia todo o tipo de desculpa, mas aquela me pareceu de fato original e criativa. Tempos depois, não sei se vocês lembram, quando a barra já estava mais ou menos limpa, ele deu declarações indignadas, dizendo que não era nada disso: era viciado apenas em álcool e em cocaína. Então tá. Gosto não se discute.

Salvo um ou outro terapeuta dando entrevista na televisão, tentando provar que coisa terrível é o vício em sexo, nunca mais ouvi ninguém falar no assunto, a não ser como piada, até Tiger Woods cair em desgraça. O seu pedido de desculpas, que deve ter sido assistido por um número recorde de telespectadores ao redor do planeta, é forte candidato a momento mais constrangedor do milênio.

Por pública que seja a vida das celebridades, há coisas que devem permanecer no âmbito particular. Os americanos, porém, que gastaram 40 milhões de dólares para saber se o presidente Clinton estava ou não tendo um caso com Monica Lewinsky, e levaram meses discutindo se sexo oral é ou não é sexo (!), perderam, há tempos, qualquer noção do que é público, do que é privado e do que é ridículo.

* * *

Pelo sim pelo não, liguei para Mamãe. Vai que eu não tivesse entendido direito o problema, ou que alguma verdade superior me tivesse escapado.

-- Você viu o Tiger Woods? – perguntei, como quem não quer nada.

-- Que absurdo, coitado do homem! – explodiu Mamãe. -- Em que mundo nós estamos?! Ele não ganha dinheiro para dar bom exemplo, mas para jogar golfe. Ainda se fosse o Papa ou o Dalai Lama...

Respirei aliviada.

-- Não é mesmo?! Fiquei achando que eu não tinha percebido alguma coisa.

-- Esse festival de hipocrisia é nojento! Vai dizer que ninguém naquele país risca
fósforo fora da caixa?! O coitado do Bill Clinton também passou por isso, com a agravante de que diziam que não era pelo sexo, mas pela mentira. Ah, façam-me o favor! Imagina como os franceses não estão rindo, agora.

-- Rindo nem digo, porque foi triste. Mas imagina todos aqueles programas da RTF, em que as pessoas falam, falam, falam... Sob este aspecto, os europeus são mesmo muito mais civilizados.

-- Têm que ser, né? Eles têm milênios de estrada.

-- Se bem que os americanos foram colonizados pelos europeus...

-- Ah, mas de que europeus nós estamos falando? Quem é que foi para lá, em primeiro lugar?

-- Os puritan... oops.

-- Pois é. Lo que passa, señora...

* * *

“Lo que passa, señora” é código familiar, e refere-se à sabedoria de um cidadão que apelidei de “filósofo anônimo de Houston”. Já escrevi sobre ele. Revirando o disco rígido, encontrei o arquivo, de fevereiro de 2003:

“Há alguns anos peguei um táxi em Houston, Texas, onde participava de uma conferência. O motorista era chileno — e lá fomos nós, batendo papo em portunhol até o meu destino. Perguntei por que tinha emigrado, e a resposta foi a de dez entre dez motoristas de táxi estrangeiros radicados nos EUA: as coisas andavam difíceis em casa, precisava ganhar dinheiro. Já morava em Houston há dez anos, adorava a cidade, o clima e o trabalho, estava feliz.

— Então você não volta mais?

Como não? Lógico que voltava! Aliás, sonhava com isso. Assim que tivesse o suficiente para comprar uma casinha em Santiago, adiós , América...

— Ué, mas não está tudo tão bom aqui?

Ah, sim, claro. Ninguém podia, em sã consciência, se queixar de Houston, do clima ou da grana disponível para quem estivesse decidido a dar duro. O problema eram as pessoas. Perguntei o que havia com as pessoas.

— Lo que passa, señora, es que son todos anormales.

OK. É uma generalização, e nenhuma generalização deve ser levada ao pé da letra. Um total exagero. A manifestação de um homem incapaz de perceber os matizes e as sutilezas das diferenças culturais entre os povos. Uma afirmação leviana que não merece qualquer consideração. Uma injustiça com os milhões de americanos que não são anormales — muito embora há quem assegure que, visto assim de perto, ninguém é normal.

Tirando isso, o meu filósofo anônimo de Houston acertou na mosca.”

Espero, de coração, que a essa altura ele tenha conseguido juntar seu dinheirinho, e esteja vivendo feliz em Santiago.

* * *

Enquanto isso, nos Estados Unidos, toda uma indústria brota em torno da vida sexual de Tiger Woods. Um conjunto de doze bolas de golfe, cada uma com a cara e o nome de uma das suas supostas amantes, está fazendo o maior sucesso – a US$ 54. Uma das amantes, naturalmente, já está processando o fabricante. Joslyn James deu entrevista coletiva com ar compungido ao lado de uma advogada: "Como vítima de violência, me incomoda saber que alguém vai usar um taco perigoso para bater numa bola com o meu rosto pintado”, disse a moça, que é atriz pornô e é procurada pelo estado de Washington. Outras duas amantes assinaram contrato para posar nuas; uma quarta prepara um livro em que vai contar o seu tórrido romance, ao passo que uma quinta faturou um dinheirinho dando uma entrevista cheia de detalhes picantes para uma revista sem compostura. Especula-se que uma sexta, que ameaçou botar a boca no trombone, descolou uma pequena fortuna para ficar calada. E por aí vai. Mesmo para os padrões habituais do mundo esportivo, é uma coleção de vagabas para ninguém botar defeito.

(O Globo, Segundo Caderno, 25.2.2010)

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