18.2.10

Ainda o carnaval,
e uma celebridade




No jornal que li hoje à tarde, o Jabor comentava que, todo ano, a sua crônica cai em pleno tríduo momesco – e, todo ano, dá-lhe carnaval. Como dizer algo de novo mais uma vez? O carnaval é cruel com os cronistas: cai sempre nos mesmos dias da semana. Para mim sobra o primeiro dia do ano... em plena folia! O que vocês lêem na quinta, sóbrios e compenetrados, eu escrevo na terça, em clima de feriado, ainda meio fora do ar depois de virar a noite no sambódromo. O dia mais quente do ano, título que provavelmente perderá para quarta, o meu amanhã e ontem desta edição.

Vocês vão dizer que estou obcecada com isso, e estou mesmo, mas o calor está tão acachapante que, este ano, quase me tirou a alegria do carnaval. Não fui para a rua, não vi a banda, não sai nos blocos. Até a quinta passada, nem mesmo queria ir à Marques de Sapucai: como assim, sair do ar refrigerado?! Aí começou o noticiário com detalhes dos desfiles, os amigos deram de me tentar e pronto. Caí na devassidão, e fui feliz.

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Pergunta que quero fazer há muitos carnavais: por que os cartões magnéticos usados para entrar no Sambódromo são tão caprichadinhos se acabam engolidos pela catraca? Entra ano, sai ano, e a mesma cena se repete um sem número de vezes: pessoas desconsoladas diante da roleta, pedindo, em vão, para guardar o que seria uma simpática lembrança da noite. O desfile das escolas de samba do Rio, maior espetáculo da terra, devia ter melhor compreensão dos hábitos dos freqüentadores de espetáculos.

O ser humano é, por natureza, um animal nostálgico e colecionador, que guarda bobagens vinculadas a eventos marcantes. Agora mesmo, no eBay, encontra-se à venda um ingresso que não me deixa mentir, para uma luta de boxe entre Jack Johnson e Jim Jeffries, em Reno, Nevada, no remoto ano de 1910. É só um pequeno pedaço de papel, que ficou guardado, quietinho, durante cem anos. Está saindo a 8 mil dólares, mas essa quantia, que pode ser contabilizada, é o de menos; só quem o guardou inicialmente sabia seu valor verdadeiro.

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Eu nunca teria pensado que uma luta de boxe acontecida há um século pudesse seqüestrar uma crônica sobre o carnaval; mas não é que, ao fazer uma busca por ingressos antigos, esbarrei com a História? Jack Johnson foi o primeiro negro a se sagrar campeão mundial de pesos-pesados, e conquistou o título justamente em Reno. Jim Jeffries, que se aposentara há seis anos como campeão invicto, decidiu desafiar Johnson para “provar a supremacia da raça branca”. Levou uns bons e merecidos tabefes para deixar de dizer besteira e perdeu o título; mas era tão explosiva a situação dos Estados Unidos, que o resultado foi motivo de grandes tumultos por todo o país.

Johnson foi uma celebridade avant la lettre. Aprontou muito, casou-se com brancas desafiando os tabus sociais e, por causa de uma delas, acabou condenado a um ano e um dia de prisão. A desculpa oficial foi que teria “atravessado fronteiras estaduais com uma mulher com intuitos imorais” (!!!). Fugiu do país, passou sete anos entre o Mexico, a França e a America Latina, mas, ao voltar, foi preso e cumpriu pena. Abriu uma boate no Harlem, que mais tarde vendeu para um gangster. O lugar era bacaninha: chamava-se Cotton Club.

Nosso herói morreu num desastre de carro, aos 68 anos, ao sair furioso de um restaurante que se recusara a servi-lo. Sua vida daria um romance – e, é claro, deu mesmo. Deu filme também, e incontáveis referências na cultura popular. Vocês me desculpem se já sabiam disso tudo, mas é que, até fazer a busca no eBay, há meia hora, eu nunca tinha ouvido falar em Jack Johnson. Agora, estou achando aquele ingresso até barato.

Sic transit gloria mundi.

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“Entre os detritos de carnaval dos quais os banhistas precisam desviar estão três ou quatro bolsões de banheiros químicos instalados no calçadão. A fedentina capturada durante a noite agora cozinha sob o sol, transformando-se numa bomba de gás paralisante. (....) É doloroso imaginar que aquilo tenha sido produzido por pessoas ordeiras, que usaram o banheiro em vez de se aliviar na sarjeta. Aquele xixi é um xixi bem-comportado, um xixi igual ao seu e ao meu – não é que nem o xixi maloqueiro dos que acham que parede é penico. Você passa por ali e promete nunca mais fazer xixi na vida. (....) A mesma prefeitura que vendeu o carnaval de rua a uma marca de cerveja decretou a caça impiedosa a todos os que consumiram o produto do patrocinador e não conseguiram enfrentar a barra pesadíssima dos banheiros químicos. “Prendem os mijões e deixam os ladrões à solta”, como vi reclamarem no Twitter. O tiro saiu pela culatra: o carnaval de 2010 criou uma geração com trauma irreversível de banheiro químico.”

A constatação é do “travel writer” Riq Freire. “Travel writer”, como vocês sabem, é um camarada que exerce a cobiçada profissão de viajar para contar o que viu. Pois mesmo o Riq, que por dever de ofício já viu de tudo no mundo, nunca viu nada parecido com as composteiras urinárias da cidade, e propõe a adoção paralela de um Choque de Higiene. Eu assino embaixo, e proponho um terceiro choque: o de bom-senso.


(O Globo, Segundo Caderno, 18.2.2010)

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