14.8.08


Tango, fado e outras bossas

O Xexéo perguntou se eu topava escrever uma crônica sobre a bossa nova, posto que teríamos um caderno temático comemorando os seus 50 anos. Topei na hora: não ia ser a desafinada da edição. Depois, quando sentei num banquinho, de bloquinho e canetinha na mão, algumas coisas me vieram à cabeça -- a primeira sendo “O feitiço do tempo”. Vocês sabem, né? Aquele filme em que o Bill Murray é um repórter de TV que vai cobrir o Dia da Marmota em Punxsutawney e fica preso num famigerado 2 de fevereiro em que acorda, dia após dia, durante uma eternidade. Isso porque a sensação que eu tenho -- com todo o respeito -- é que o aniversário da Bossa Nova vem sendo comemorado ininterruptamente há... hmmm... bom... hã... enfim, há um tempo tão grande que já nem lembro mais.

A segunda foi uma vaga sensação de pânico. É até possível que ainda haja alguma coisa inédita a ser dita sobre a bossa nova -- mas, se houver, será dita pelo Ruy Castro ou pelo João Máximo, e não por mim, que, a rigor, passei pela vida ao largo dessa história. Para dizer a verdade, acho que conseguiria escrever com mais facilidade sobre o tango ou o fado que, “exóticos”, sempre me chamaram mais a atenção.

A bossa nova, logo ali, era uma trilha sonora que eu ouvia com tanta freqüência que, a rigor, nem me dava conta de que estava tocando. Ao mesmo tempo, seus temas, de que hoje gosto justamente pelo trivial simples, me pareciam, então, o que havia de mais insosso:

-- O barquinho vai, a tardinha cai...

Ora, isso era letra que se apresentasse?!

-- O pato vinha cantando alegremente: quem quem!

Muito ecológico, mas o que queriam que cantasse o pato? Au au?! Ah, não, do que eu gostava mesmo era das letras dramáticas dos tangos, daquele mundo de répteis de lupanar, vivendo no lusco-fusco sensual da media luz, em nuvens de fumaça:

-- Tendida en la chaise longue, soñar y amar... Ver a mi amante solícito y galante, sentir sus lábios besar con besos sabios, y el devaneo sentir con más deseo, cuando sus ojos veo, sedientos de pasión...

Este é um trechinho de “Fumando espero”, hoje banida para o mundo do politicamente incorreto e, para a não-fumante que sempre fui, do sensorialmente nojento:

-- Dame el humo de tu boca, anda, que así me vuelvo loca! Corre, que quiero enloquecer de placer, sintiendo ese calor del humo embriagador que acaba por prender la llama ardiente del amor...

Ainda assim, pode haver descrição mais envolvente do que, em última instância, equivale a beijar um cinzeiro? Isso sim é letra! E aquela quantidade de homens traídos, chorando as mágoas pelos bares? Todos caminhando pela senda da virtude (“Noche de reyes”), compreensivos e bacanas (“Mano a mano”), golpeados no âmago do coração (“Tomo y obligo”)?

Pois estava eu um dia a escutar uns fados, que a bem dizer são o contrário existencial dos tangos, já que neles as mulheres é que sofrem com a perfídia dos homens que as abandonam, quando fez-se a luz: se os argentinos se casassem com as portuguesas, tudo estaria resolvido! Eles seriam felizes para sempre, as cenas de ciúme e de desespero deixariam de ser matéria prima do cancioneiro e todos, enfim, poderiam se dedicar a cantar algo menos trágico, menos sofrido e mais parecido com uma tarde de primavera. Todos poderiam cantar algo como, digamos... bossa nova!

* * *

As idas e vindas por fados e tangos, que viraram mania para o resto da vida, eram, na época, apenas uma espécie de aventura antropológica. Minha vida musical “de verdade” se dividia em duas correntes distintas: de um lado, a música clássica que eu ouvia apaixonadamente e estudava desde criança, e que, durante algum tempo, cheguei a considerar como hipótese profissional (eu tocava violino); e, de outro, o rock dos Beatles e dos Rolling Stones.

Minhas lembranças de adolescência são embaralhadas e pouco confiáveis cronologicamente mas, em algum momento, já era a música de protesto que falava por mim, tanto em português quanto em espanhol ou inglês. O mundo estava torto, precisava ser consertado, e não era cantando “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...” que a gente ia dar jeito nas coisas.

* * *

Passei por muitas e muitas fases musicais ao longo da vida: descobri a pungência da música do interior, me apaixonei pelos ritmos nordestinos e pela canção nativista do Sul. Com as viagens e o Napster (lembram?) descobri mundos de sons maravilhosos com palavras incompreensíveis, tudo misturado naquele balaio que os americanos chamam de “World music”. Em suma: em termos musicais, sou praticamente onívora.

Hoje, contudo, refletindo aqui no meu banquinho, vendo a tardinha cair lá fora, é que me dou conta de tudo o que a bossa nova representa para mim. Ela é, aventuras à parte, o porto seguro, o colo, o feijãozinho com torresmo; a parte melhor da vida, aquela, que a gente vai vivendo enquanto canta “Eu sei e você sabe já que a vida quis assim, que nada nesse mundo levará você de mim...”


(O Globo, Segundo Caderno, 14.8.2008)

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