12.10.06


Seria perfeito se fosse perfeito

A Finlândia é tudo o que o Brasil não é, mas o
cerumano, animal complicado, nunca está feliz



Diz o Aurélio que antípoda é o "habitante que, em relação a outro do globo, se encontra em lugar diametralmente oposto". Os japoneses podem ser nossos antípodas geográficos, conforme ensinam os livros de geografia, mas cada vez mais me convenço de que nossos antípodas morais e existenciais são os finlandeses, praticamente incorruptíveis. Sempre classificada entre os países com menor índice de corrupção mundial, nos três últimos anos seguidos a Finlândia encabeçou a lista da Transparency International, organização que estuda a roubalheira pelo planeta.

Lá, oferecer uma vodka ao guarda dá quatro anos de cadeia; mas nem é preciso tanto. A simples distribuição de condecorações, dependendo das circunstâncias, pode ser considerada corrupção. Na verdade, só escrevi "praticamente incorruptíveis" porque, entre 1985 e 1992, 25 pessoas foram a julgamento pelo que o PT acha tão normal. Vai ver, eram estrangeiros.

Ao contrário do que pensa a fina flor da intelectualidade brasileira, os finlandeses provam que é possível, sim, fazer política sem meter a mão na merda -- ou, mesmo, no esterco de rena. A contrapartida é que não dá para enriquecer no ramo, fazer favores para amigos ou fechar os olhos para contratos milionários dos filhos. Em suma: política, lá, é uma profissão como outra qualquer, exercida, basicamente, por gente de bem.

Isso cria problemas para os chargistas. Durante os dias que passei em Helsinki vi vários jornais locais, e em todos, sem exceção, as charges diziam respeito a questões mundiais. E este, notem bem, não é problema que afete parcela pequena da população, pelo contrário: os finlandeses são os principais leitores de jornais na Europa. Um em cada dois compra um exemplar diariamente.

Juntos, os cinco milhões de habitantes do país consomem 200 diferentes jornais, 320 revistas populares, mais de duas mil revistas especializadas e uns 12 mil títulos literários ao ano. Há internet em 67% das casas e 95% da população têm celular. Os 5% restantes não têm, não por razões financeiras, mas por objeção filosófica. Em compensação, todas as crianças de sete anos ou mais, que ainda não podem se dar ao luxo de objetar filosoficamente contra o que os pais decidem, têm.

Nem preciso dizer, aliás, que não há crianças fora da escola, né? Mas talvez seja bom acrescentar que, de acordo com o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os estudantes finlandeses são os que recebem a melhor avaliação na compreensão de textos, ciência e matemática. Perdem por um nadica na solução de problemas para os da Coréia do Sul mas, por outro lado, são educados em finlandês e sueco, as línguas oficiais do país -- e, depois de uma certa idade, numa língua estrangeira à escolha. Com isso, é difícil encontrar um finlandês que não fale inglês ou russo. E, melhor, que não o faça fluentemente.

Como Deus não dá asa a cobra, esse povo incrivelmente civilizado, diligente e gentil tem a segunda mais alta taxa de suicídio do mundo; a primeira fica com a Hungria, que em comum com a Finlândia tem apenas um idioma igualmente impenetrável para os de fora. Até que detetives filólogos descubram que vogal esconde o DNA dos lemingues, há algumas teorias que vão e vêm. A mais aceita é a dos baixos níveis de serotonina causados pela falta de luminosidade -- nos folhetos turísticos, o país faz muito alarde com o sol da meia-noite, mas raramente menciona a lua do meio-dia. Outra causa provável é o índice de alcoolismo, francamente alarmante.

Nenhuma das pesquisas que li sobre o assunto, no entanto, menciona a falta de comunicação -- mas algo diz à minha alma latina que aquele silêncio todo não pode fazer bem a ninguém. Finlandeses dificilmente dirigem a palavra a desconhecidos, embora sejam receptivos se conversamos com eles. Almoçando no mercado, perguntei a uma senhora se podia me sentar à sua mesa. Ela fez que sim, sorriu, e eu, cariocamente, fiquei esperando que dissesse alguma coisa. Nada. Decidi assumir a liderança dos trabalhos e fiz um comentário qualquer sobre o tempo. Pronto: bastou isso para batermos um ótimo papo. Quando nos despedimos, ela agradeceu efusivamente:

-- Ah, é tão bom conversar com pessoas de outros países!

Na volta para o aeroporto, a van que me buscou no hotel pegou, em seguida, duas outras pessoas, em diferentes endereços residenciais. Durante os 40 minutos da viagem, ninguém disse palavra. Lá estavam o motorista, uma passageira e um passageiro, todos finlandeses, e ninguém dizia nada, nada, nada. O silêncio era de cortar os pulsos.

Os finlandeses ficaram em áreas de embarque doméstico, e eu segui em frente. Assim que cheguei à área internacional dei com um grupo de italianos que vinham de um tour pela Escandinávia. Começamos a conversar imediatamente, tomamos café juntos e dei várias informações sobre o Rio, que sonham conhecer um dia. Alguns minutos depois nos despedimos, melhores amigos que jamais se verão novamente, contentes da vida.


(O Globo, Segundo Caderno, 12.10.2006)

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