26.10.06

Diálogo com a Sábia Coruja

Calma, calma: não há motivo para desespero.
Uma vitória do PT tem seus pontos positivos...



Depressão mata, e não tenho planos imediatos de me mudar definitivamente de endereço. Mas como não ficar deprimida lendo o noticiário, assistindo aos debates e, sobretudo, escutando as ficções e meias-verdades do pai do Ronaldinho das Telecomunicações? Antes de perder de vez a esperança, fui trocar dois dedos de prosa com a Sábia Coruja das Highlands, que sempre tem uma visão otimista do mundo e uma palavra de consolo para os aflitos.

-- Você já pensou no que vai ser isso?! -- perguntei. -- Mais quatro anos de crimes e maracutaias, com pleno aval do eleitorado?!

-- É, -- assentiu a Sábia Coruja. -- Bonito não vai ser não. O governo vai interpretar a reeleição como uma indulgência plenária, uma procuração popular para a compra e venda de deputados, dossiês e o que mais for necessário à sua permanência no poder. E o pior é que não estará longe da verdade.

-- Não sei mais o que pensar, -- desabafei. -- Tenho amigos corretos e honestos, gente direita mesmo, incapaz de roubar uma caixa de fósforos, que vai votar no Lula. Tenho amigos inteligentes e vividos, que sabem como é difícil ganhar a vida, que vão votar nele apesar das quantias obscenas de dinheiro que circulam ao seu redor; eles não demonstram indignação sequer quando digo que, para ganhar o que o Lulinha Fenômeno levou da Telemar, um trabalhador que vive de salário mínimo teria que passar mais de 1,2 mil anos trabalhando, sem gastar um centavo... Repara, mais de um milênio!!! Mas eles acham que está tudo certo, que é assim mesmo.

-- Bom, -- obtemperou a Sábia Coruja. -- Pode ser que acreditem na palavra do pai, quando diz que o rapaz tem talento.

-- Mas como é que alguém pode acreditar nisso, em sã consciência?! -- explodi. -- Talento é uma coisa, cinco milhões e duzentos mil reais são outra. Imagina, cinco milhões e duzentas mil notas de um real, uma em cima da outra... Mesmo que eu soubesse calcular direito, e que soubesse como se fazem esses cálculos, não conseguiria imaginar o tamanho de tal montanha de dinheiro!

-- Ué, mas eles não acreditam no Lula quando ele diz que não sabia de nada?

-- Acreditam.

-- Então? Quem acredita nisso acredita em qualquer coisa, ora.

-- Tem razão. Quero um uísque duplo!

-- Não adianta, você não bebe.

-- Tem razão. Quero um chocolate!

-- Você não está de dieta?

-- Estou, tem razão.

-- A única coisa que você pode querer é que os próximos quatro anos passem rápido; mas não recomendo. A vida é curta demais para que a gente se deixe abater por coisas que estão fora do nosso universo emocional imediato. Por outro lado, uma possível vitória do PT não deixa de ter seus pontos positivos...

Ahá! Eu sabia que a Sábia Coruja das Highlands não me deixaria na mão.

-- Jura?! Você não está dizendo isso só para me consolar, está?

-- Não, claro que não. Nos últimos anos o mundo inteiro passou por um ciclo de prosperidade. O Lula pegou um país estabilizado, na medida do possível, considerando-se as crises internacionais que o FhC teve que enfrentar. Por mais que ele fale da "herança maldita", a verdade é que tentou seguir a mesma política econômica. Ficamos na lanterninha da onda de crescimento mundial, mas pelo menos crescemos alguma coisa. Só que ciclos virtuosos não duram para sempre. O próximo presidente, quem quer que seja, vai, provavelmente, encontrar um período menos risonho na economia mundial. E, como se não bastasse, tendo que enfrentar as conseqüências da péssima administração do PT. Já se sabe que o orçamento para o ano que vem não fecha se o governo não reduzir os gastos em pelo menos cinco bilhões. Ou, mais provavelmente, se não esfolar a população em mais cinco bilhões. Agora ponha-se no lugar de qualquer candidato: você gostaria de pegar um abacaxi desses? A máquina inchada a mais não poder, uma crise sem precedentes pronta a estourar na Previdência... Se o Alckmin ganha a eleição, ainda leva de quebra a oposição sistemática, hidrófoba e antipatriótica do PT. Com um detalhe perverso: a população em geral, que não entende nada de economia, vai repetir, até o fim dos tempos, que o Lula sim, é que sabia governar. Ora, o que ganha o PSDB tirando as castanhas do fogo para o PT?

-- Hmmm... Eu não tinha pensado nas coisas sob este aspecto.

-- Pois pense, -- disse a Sábia Coruja. -- Até aqui, o Lula nunca teve o menor pudor em culpar o FhC por tudo o que há de errado no país. Agora já disse, reiteradas vezes, que o país está "prontinho para crescer"; pois vamos ver, então, como se vira com a maravilha que criou.

-- É, só que é o país da gente, caramba! Você acha que o Brasil sobrevive a mais quatro anos dessa corrupção desenfreada?

-- Sobrevive,como não? -- sorriu a Sábia Coruja. -- Se você tivesse visto a devastação da guerra na Europa... Ali sim, a gente ainda podia imaginar que nada nem ninguém sobreviveria; no entanto, veja a Europa de hoje...

-- E você acha que a nova turma do Lula não vai cobrar a fatura? Ou que a turma antiga não vai cobrar os sacrifícios e bodes expiatórios? Você acha que o Jader Barbalho, por exemplo, vai deixar no barato?

-- Claro que não. Exigirá pelo menos mais um ranário para a mulher. Mas o Brasil, felizmente, é maior do que a fenda no abismo. Bem maior.


(O Globo, Segundo Caderno, 26.10.2006)

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