18.10.06


Fernando Gasparian,
como um pai


As festas eram concorridíssimas, os encontros sempre interessantes, as discussões formidáveis; material irresistível para quem, como eu, vive com uma câmera na mão. O problema eram as idéias na cabeça, voando como borboletas entre tanta gente inteligente, tantos bons escritores, tantos personagens da História recente: hipnotizada pelas palavras, eu acabava invariavelmente me esquecendo das imagens. Mas, ainda que tivesse registrado todos esses momentos, não haveria foto capaz de gravar a minha melhor lembrança de Fernando Gasparian, o admirável intelectual e perfeito anfitrião em torno de quem gravitava todo este rico universo: de pé ao lado de Dalva, na estação de Wiesbaden, acenando para o último trem da noite, que me levava de volta a Frankfurt.

Aconteceu em algum momento dos anos 90, numa feira do livro, e é impossível descrever a ternura que me despertou a visão que se afastava daquele casal tão querido e atencioso.

* * *

Praticamente não houve cronista que não destacasse a importância política de Fernando Gasparian quando de sua morte, há dez dias: a coragem de sua resistência à ditadura, o seu patriotismo digno e inabalável. Não havia como evitar. Somos seus devedores eternos. A liberdade de opinião no país se fez, em boa parte, graças à sua sólida presença na imprensa alternativa, à frente do "Opiniâo" e por trás do "Pasquim" que, sem seu auxílio, teria tido vida curtíssima.

Nunca perdi de vista a sua extraordinária estatura moral, evidentemente, e posso dizer que muito do amor incondicional que tenho pelo Brasil herdei dele -- das revistas, livros e jornais que publicou, de tantas pessoas que conheci em sua casa, do seu permanente exemplo. Com o tempo, no entanto, fui me acostumando a ver no pai dos meus amigos Heleninha, Laura, Eduardo e Marcus uma espécie de segundo pai, sempre carinhoso e gentil, sempre com uma palavra de estímulo.

Com avô livreiro, nascida numa casa que mais parecia uma biblioteca, era normal que me identificasse naquele ambiente onde todos liam, pensavam, trocavam idéias. Mas foi a atitude ao mesmo tempo firme e terna do Fernando, de me puxar para baixo da sua asa naquele outono frio na Alemanha, que atou de vez os laços do meu coração: o que é que eu estava fazendo solta no meio daquele mundo, procurando por multimídia, quando havia tantos livros -- livros! -- para ver?!

* * *

Percorrer a Feira de Frankfurt ao lado de Dalva e Fernando Gasparian era ter a sensação de pertencer a uma espécie de realeza, ao que a humanidade tem de melhor -- gente envolvida com o livre trânsito das idéias, buscando levá-las ao maior número possível de pessoas. Atravessar um corredor de cem metros era tarefa de horas, porque os principais editores, ao verem Gasparian, vinham cumprimentá-lo, discutir acontecimentos, mostrar lançamentos. Sua curiosidade era universal -- e, naturalmente, cada conversa ia longe.

Eu observava deslumbrada os mundos que se abriam à minha frente. Então eram aquelas as pessoas que estavam por trás das grandes editoras cujos nomes eu reverenciava desde criança?! E era assim que os livros ganhavam asas e cruzavam os mares, em busca de um novo público?! Eu mal conseguia acreditar na minha sorte: não só estava vendo em primeira mão o que seria lançado ao longo do ano como, ainda por cima, ouvia sua apreciação por parte de gente que jamais sonhara conhecer.

Imagino que muitos dos profissionais presentes à feira tivessem a mesma prática, o mesmo talento e até, quem sabe, o mesmo prestígio do Gasparian; afinal, a "Paz e Terra" não chegava a ser uma potência de mercado. Mas voltando outras vezes à feira, e prestando atenção ao que acontecia, vi poucos editores tão estimados e respeitados pelos seus pares d'além mar.

* * *

Naquela época, Frankfurt ainda era uma cidade singularmente desprovida de bons hotéis. Enquanto seus colegas disputavam quartos ridículos a peso de ouro, Fernando Gasparian, que tinha um know-how de mapas e de meios de transporte insuperável, estava num verdadeiro palacete em Wiesbaden, a meia hora de trem.

Ao contrário de Frankfurt, Wiesbaden é agradável e bonita, e vive no ritmo das termas que atraem visitantes desde os tempos romanos; um lugar de paz e calma em contraponto à loucura da Feira do Livro, que consegue esgotar em pouco tempo a paciência e a energia de quem tem que enfrentá-la.

Ele e Dalva estavam apaixonados pela cidadezinha e, uma tarde, me levaram até lá para conhecê-la. Intuiram que aquela era a pausa de que eu estava precisando, e fizeram daquele um dos dias felizes e inesquecíveis da minha vida. Passeamos, nos divertimos, fomos ao cassino. À noite, sob meus protestos, os dois fizeram questão de me levar de volta à estação e de me ver embarcada, como fazem os bípedes de bom coração com os bípedes mais jovens de quem resolvem cuidar. Fiz o percurso com a certeza absoluta de que nada de mal me poderia acontecer, com aquela dupla amorosa zelando por mim.

Vou levar saudades do Gasparian enquanto viver; mas levarei também a certeza do privilégio que tive de conhecê-lo, e de conviver com a sua preciosa família, que tanto amo.


(O Globo, Segundo Caderno, 19.10.2006)

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