5.10.06

Milagres e conversas de viagem

Não só eram sete da manhã e eu já estava vestida (e bota vestida nisso!) e acordada (menos, Cora, menos) como, ainda por cima, no prato à minha frente havia uns bolinhos de batata frita acompanhados de bacon, lingüiça, salaminho, ovos mexidos, queijos diversos e outros alimentos igualmente calóricos e malsãos que, normalmente, eu jamais sonharia em comer a essa hora, ainda que conseguisse estar de pé. Mas o estômago estava tão revoltado com o atraso no jantar que devorei tudo -- com tanta culpa quanto prazer.

Esta cena baixa aconteceu ontem, terça-feira. Neste momento são quase quatro da manhã de quarta em Helsinki, onde um taksi me deixou na porta do hotel na noite de segunda, exatamente 26 horas depois de um táxi me pegar na porta de casa, às 15 horas do domingo carioca. Hoje, quando vocês estiverem lendo esta crônica, estarei novamente a bordo de um Airbus 300, rumo ao Brasil. E nem ouso imaginar o que vou querer de café da manhã assim que chegar em casa, amanhã de manhã.

O corpo reclama, o que os olhos vêem não combina com o que o relógio pede, a barriga chia, o bom-senso sai de férias. Ainda assim, escrevendo num quarto de hotel do outro lado do mundo, não consigo deixar de me espantar com a velocidade dessa mobilidade, que seria puro milagre se não fosse tecnologia.

* * *

Na primeira perna da viagem, sentou-se a meu lado um profissional de aviação; ia para Amsterdã, negociar contratos. Conversa vai, conversa vem, chegou a comida de bordo com a indefectível salada à côté. Meio que pensando em voz alta, perguntei por que cargas d'água as companhias de catering cismam em servir alface, mato que notoriamente viaja tão mal.

-- Justamente por causa disso, -- respondeu meu companheiro de viagem. ? A comida pode se estragar rapidamente a bordo. A alface, mais sensível ao ar do avião do que qualquer outra coisa, é uma sinalização visual para os comissários. Enquanto ela está apenas triste, como acontece quase sempre, o resto da comida está bem.

Vocês sabiam disso? Eu não, e fiquei maravilhada. Logo me lembrei dos canários que os mineiros levavam consigo para o fundo das minas para se prevenir contra a falta de oxigênio: quando os canários morriam, era hora de fugir o mais rápido possível. Quem diria que a alface de avião, tão vilipendiada, é uma espécie de canário vegetal...

* * *

Alguém sabe informar se ainda se faz essa maldade com os canários?

* * *

Depois da alface, a conversa mudou radicalmente de rumo: Copa do Mundo. Na minha recém-adquirida capacidade de Gata Mestra, senti-me à vontade na área que, até o semestre passado, me teria feito suplicar, antes, por uma morte rápida e indolor.

Meu interlocutor defendia a idéia de que Copas do Mundo são eventos tão fabulosos que deveriam se realizar de três em três anos, de preferência na Europa, que não precisa mais de grandes gastos de infra-estrutura e onde grupos diferentes poderiam se dividir por diferentes países, todos tão próximos. Para não estressar demais os donos dos clubes, os 12 primeiros países do ranking não precisariam passar por eliminatórias.

-- Bem que você podia começar essa campanha...

Eu?! Não mesmo. Apesar de já saber o que é impedimento e de perceber as portentosas implicações sócio-turístico-econômico-culturais da questão, prefiro deixar a bandeira para alguém de mais responsa. Calazaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaans!

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Gostei muito do vôo da Tap, certamente uma das companhias aéreas mais simpáticas do mundo, mas senti enormes saudades da Varig: quando é que um dos nossos comandantes nos deixaria sem notícias sobre as eleições presidenciais?! O fato é que descemos todos em Lisboa sem saber se haveria ou não segundo turno.

Como toda pessoa de hábitos noturnos, tenho amigos da mesma espécie. Ainda da fila da alfândega, liguei para um deles que, alta madrugada, estava pensando se ia se deitar já ou continuava acordado mais um tempinho acompanhando as apurações.

-- Viva! -- exclamei para a Cristina Zahar, que viera no mesmo vôo. -- Teremos segundo turno!!!

Um frisson percorreu a fila.

-- Já acabou a apuração?

-- Está quanto a quanto?

-- E no Rio, como ficou?

Do outro lado, anjo de paciência, Tom Taborda respondia às indagações aflitas dos passageiros reunidos à minha volta. Parecia final de campeonato. A empolgação era tamanha que, por pouco, não começamos a cantar o Hino Nacional. Dirão os defensores do Guia Já-Não-Tão-Genial dos Povos que, considerando o local onde estávamos, era óbvio que pertencíamos, todos, àquela Zelite que não se conforma em ver um operário filho de mãe analfabeta etc. etc. etc.; mas a menos que houvesse algum milionário disfarçado entre nós, eu diria que aquele era um típico grupo de classe média, composto, essencialmente, de gente que não agüenta mais trabalhar para ver seu suado imposto saindo pelo ladrão.

Ladrão, eu disse? Ah, deve ser o jetlag.


(O Globo, Segundo Caderno, 5.10.2006)

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