17.7.03




Xô, helicópteros! (A Lagoa é nossa!)

Não tenho nada contra o setor hoteleiro, quem tem?, mas que, ultimamente, ele anda ultrapassando o foyer, lá isso anda. Primeiro fez aquele escarcéu quando o Manoel Carlos resolveu matar a Fernanda de “Mulheres apaixonadas” com uma bala perdida, como se disso dependesse a reputação da cidade. Logo em seguida partiu em defesa do heliponto da Lagoa.

Também não tenho nada contra o heliponto da Lagoa. Enquanto heliponto. Acho até bonito os helicópteros pousando, decolando e, sobretudo, voando em frente ao Cristo, feito insetos gigantescos. Mas tenho tudo contra qualquer coisa que atrapalhe o carioca no gozo de sua cidade. E o heliponto o faz.

* * *

Há duas semanas, como é sabido, a ciclovia da Lagoa está bloqueada. Justamente no trecho mais bonito, porque a Aeronáutica descobriu que a revoada dos helicópteros é prejudicial à saúde dos passantes. Os passantes, insensíveis à preocupação das autoridades com sua integridade física, estão indignados. O prefeito tomou — é, esse mesmo — tomou as dores pedestres e o heliponto, parece, tem agora dois meses para bater as asas e ir pousar em outra freguesia.

— Deve prevalecer a qualidade de vida da maioria — disse o prefeito ao Ancelmo Góis, com inesperada sensatez. Nem parece o mesmo prefeito do Guggenheim.

Este bom senso elementar, porém, parece faltar ao vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Hoteleira (ABIH), Ângelo Vivácqua, que acha que o heliponto deve ficar lá, interrompendo os álacres (!) caminhantes para... não atrapalhar o turismo!

— A vista proporcionada pelos pousos e decolagens da Lagoa é uma das principais atrações nos sobrevôos que os turistas fazem pela cidade, — declarou ele ao GLOBO no último dia 5. — Se o problema é a ciclovia, ela que seja desviada.

* * *

Recortei a matéria e a espetei no quadro ao lado da minha escrivaninha. Uma frase dessas não pode desaparecer assim, sem mais nem menos, no torvelinho do noticiário, como se não tivesse sido pronunciada.

Se entendi bem, senhor vice-presidente, quer dizer que as prioridades da cidade devem ser decididas única e exclusivamente para o conforto e bem-estar dos turistas?!

Entendi bem?!

Ainda que eu esteja enganada e que a prioridade seja esta mesmo —- alguém me explicaria, então, a odiosa discriminação contra justamente a maior parte dos turistas, aqueles turistas médios, que por acaso sustentam o turismo andando na Lagoa e comprando água de coco, mas não têm dinheiro para vôos panorâmicos? Será que eles não são dignos de passear por aquele trecho tão bonito?

Quando eu era criança e o mundo mais espaçoso, muita gente ainda tinha sala de visita —- em geral o melhor cômodo da casa, o mais bem decorado e arrumado e, paradoxalmente, o menos usado de todos.

As mães tinham horror de que nós, crianças, fizéssemos bagunça na sala de visita; detestavam, igualmente, que os maridos ficassem por lá, fumando, lendo jornal, e pondo copos ou xícaras em cima dos móveis de madeira lustrada.

Por isso a sala era sempre um espaço ocioso, mal aproveitado, aberto apenas em dias de festa, pois as visitas apareciam muito raramente — na maior parte das vezes, aliás, para extrema aflição da família, tanto que havia um elenco de procedimentos para afungentá-las. Me lembro bem de dois deles, vassoura de cabeça para baixo atrás da porta e sal no fogo — mas isso é outra história.

* * *

O fato é que eu, que sempre morei literalmente dentro de uma biblioteca, onde a vida doméstica disputava cada metro quadrado com os livros do meu pai, não era íntima de salas de visita, e ficava muito admirada com as salas de visita das casas dos colegas.

Mais do que o desperdício de área útil, me chamava a atenção a tristeza daquelas salas, com as quais ninguém tinha qualquer familiaridade, e de que ninguém gostava de verdade, nem mesmo a dona da casa.

Não sei se ainda se reservam salas para as visitas, mas elas sempre me voltam à lembrança quando o turismo é apontado como principal motivo para se fazer, ou não, alguma coisa pela cidade. Não percebem que não precisamos de salas de visitas. Precisamos é de cuidar melhor da sala de estar, da cozinha, do banheiro, de onde se vive a vida real.

Tudo, por tabela, para as visitas, para os amigos, aberto com toda a nossa simpatia. E, para alguns, até com amor.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.7.2003)

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