24.7.03




Não faça do seu filho uma arma!

O que tem na cabeça uma família que dá um Audi de presente para um garoto de 17 anos? Isso não é uma pergunta ocasional. É uma dúvida profunda e angustiante, que não sai do meu pensamento desde que soube do horrendo crime de sexta-feira. O que é que essa família acha que está fazendo? Que espécie de valores está transmitindo ao filho? Que tipo de ser humano-cidadão está formando? Que raça de monstro está soltando nas madrugadas das nossas vidas?!

Eu sei: quem matou Gustavo Damasceno não foi o mauricinho do Audi, foi o bacaninha do Honda — mas, moralmente, isso não faz a menor diferença.

Qualquer um deles podia ter colhido (abalroado, estraçalhado) o Uno Mille; um só agia em função do outro. Ninguém — nem mesmo imbecis de alta periculosidade como esses — bate pega sozinho.

Confesso que a mim me horroriza menos o assassino que estava ao volante do Honda emprestado do que o que estava (dizem, eu não acredito) no banco-carona do seu próprio carro. Este é o elemento (na acepção policial da palavra) que mais me choca nessa tragédia. O Audi é apenas a ponta visível e sinistra do iceberg de deseducação e desamor que, há 17 anos, cresce em volta deste rico desgraçado.

Desgraçado — entendam, por favor — no sentido mais chão e literal do termo: “De má sorte; infeliz, desventurado, infausto.” (Aurélio). Sem qualquer das graças que compõem um ser humano, acrescento eu.

Pois considero uma grande infelicidade nascer numa família em que o dinheiro e as aparências são os principais — se não os únicos — valores da vida. Podem contrapor que não tenho o direito de dizer isso sem conhecer a família. Conheço. Com maiores ou menores variantes, ela é igualzinha à família dos pervertidos que tocam fogo em mendigos, dos pitboys que se divertem espancando homossexuais, do filho do ministro que atropela um ciclista e foge sem prestar socorro. Acobertado pelo pai.

Quem dá um Audi para o filho menor de idade não tem qualquer noção do que seja civilidade ou educação. Para não falar em humanidade.

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Paradoxalmente, deve ter sido feliz o rapaz assassinado, durante os breves 26 anos que viveu — ao lado da namorada de quem gostava, cercado por uma família boa, normal, naquele sentido que vai se tornando raro. Imagino a satisfação que ele devia sentir ao poder contribuir financeiramente para o bem estar dos pais, e o orgulho que deviam sentir esses pais ao verem, no filho correto e trabalhador, um homem de bem.

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É claro que o maurício do Audi e seus pais jamais vão entender isso. Neste momento, devem estar todos muito ocupados se consultando com um advogado de grande renome, assim do porte de um doutor Clóvis Sahione, para saber onde devem assinar seu nome com um i-borrachinha. Para que tudo acabe como sempre.

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Eu gostaria muito de acreditar que desta vez vai ser diferente, que desta vez a Justiça vai tirar sua venda incompreensível, e fazer os criminosos pagarem pelo que fizeram.

Mas não consigo acreditar, pois sei que para o Estatuto da Criança e do Adolescente, menor não comete crime, apenas “ato infracional”. E, de qualquer forma, já ficou decidido que o menor em questão nem estava ao volante do Audi.

É apenas um carona da desgraça alheia.

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Enquanto isso, na internet, um grupo de garotos do bem está tendo que driblar a lei e matilhas de advogados por causa de um belo e inédito exercício de companheirismo. Como (quase) todo mundo sabe, o quinto volume do Harry Potter só chegou às livrarias em inglês; nenhuma editora, em país de qualquer outra língua, teve acesso aos originais.

Resultado: criou-se uma complicada situação de desigualdade cultural entre os fãs da série. A garotada poliglota já devorou o livro, mas não pode discuti-lo com os colegas, digamos, lulistas.

O que fez, então, a turma anglo-parlante? Dividiu os capítulos entre si e começou a traduzi-los. À medida em que os capítulos ficam prontos são postos na internet, para acesso dos monoglotas que, assim, atingem a democracia literária.

Claro que isso não está certo, juridicamente falando; mas é muito legal. O interessante é que este fenômeno está acontecendo espontânea e fulminantemente em inúmeros países. E o triste é constatar que J. K. Rowling e a Bloomsbury, sua editora inglesa — na trilha das gravadoras que mataram o Napster — não entenderam nada. E vêm com tudo.

(O Globo, Segundo Caderno, 24.7.2003)

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