27.9.02




Domingo sangrento

Assim caminha a humanidade

No dia 30 de janeiro de 1972, uma passeata contra a presença britânica na Irlanda do Norte entrou para a história quando parte de seus manifestantes desviou-se do trajeto proposto para confrontar-se com as tropas de repressão inglesas, que abriram fogo sobre a multidão. Vinte e sete civis foram feridos; 13 morreram no local e um mais tarde, no hospital. Ao longo dos 30 anos seguintes, três mil vidas mais se perderiam no país em choques entre católicos e protestantes, numa espiral de violência que, se não nasceu ali, lá teve seu momento decisivo, ao lançar nos braços armados do IRA centenas de jovens desiludidos com as possibilidades de um movimento pacifista.

O primeiro inquérito, instaurado logo após o massacre, inocentou os soldados com a clássica desculpa de que teriam atirado em defesa própria contra manifestantes armados, ainda que arma alguma tenha sido encontrada no local. Um novo inquérito, menos parcial e mais atento aos fatos, foi aberto em 1998, e prossegue até hoje, tentando trazer à tona a verdade.

Baseado no livro “Eyewitness Bloody Sunday”, de Don Mullan, que recolheu depoimentos de testemunhas do episódio, o filme de Paul Greengrass poderia ser, na verdade, a versão filmada deste novo inquérito — que, por sua vez, pode vir a ser uma espécie de continuação da história, em tempo real, para quem tiver a atenção despertada para os conflitos da Irlanda do Norte a partir desta obra extraordinária.

A narrativa se resume às 24 horas que cercam a manifestação e se concentra no político pacifista Ivan Cooper. Representado de forma comovente e irretocável por James Nesbitt, um dos poucos atores profissionais em cena, Cooper se inspira em Gandhi e Martin Luther King, canta “We shall overcome” acreditando piamente na letra, e conduz sua gente ao abatedouro com a aflitiva ingenuidade do idealismo. No fim do dia, é visivelmente um homem em estado de choque, abalado pela perda de amigos e de convicções.

“Domingo sangrento” (Urso de Ouro no Festival de Berlim, às 18h30m na Casa de Rui Barbosa) não é um filme “fácil”. Greengrass não faz favores ao público, não explica nada, não conta uma historinha linear com começo, meio ou fim. Mostra os dois lados da moeda, os ativistas sedentos por briga e os soldados despreparados, com os nervos à flor da pele. A câmera entra de sola numa ação em movimento, mantém distância dos personagens, corre e cai com eles e é tão confusa quanto a situação que retrata. Quando se ouvem os primeiros tiros, ela está apontada para outra direção; quando os soldados imaginam ver armas nas mãos dos manifestantes, ela não esclarece coisa alguma. O que é que eles estão segurando? Pedras? Pistolas? Quem sabe?

O que a gente vê na tela é magistralmente mostrado quase que como material bruto para um documentário, característica acentuada pelas cores amortecidas do dia de inverno, com seus 256 tons de cinza. As cenas são curtas, algumas falas interrompidas ao meio, a seqüência por vezes sem nexo. O fato de sabermos, desde o começo, qual é o fim da história só faz aumentar a impotência gerada pelas imagens incompletas, como se o cinegrafista, assim como os seus personagens, fosse, a cada momento, pego de surpresa.

Como, ao fim, somos todos nós. O pior é que já vimos este filme e esta intifada milhares e milhares de vezes, desde o começo dos tempos — mas não aprendemos nada.

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