8.1.09


Um Rio de amor que se perdeu

Enquanto isso, no Flamengo, há uma revolução
silenciosa por trás do muro rubro-negro



Um dos livros mais tristes da temporada é “Rio de Janeiro 1930-1960, Uma Crônica Fotográfica”, de George Ermakoff. Ao longo de suas quase 250 páginas, vemos uma Cidade Maravilhosa realmente digna do apelido. Para quem vive o Rio à flor da pele e sofre com o que poderia ter sido mas não foi, aquela sucessão de fotos, uma mais linda e evocativa do que a outra, equivale a uma igual sucessão de punhaladas no coração. Lá está a prova: nós tivemos, sim, a cidade mais bonita do mundo, um paraíso urbano inigualável, assassinado pela fusão e pela mudança da capital para Brasília, de um lado, e, de outro, pelo inexplicável veio masoquista que nos faz eleger um governo canalha atrás do outro. Faltaram carinho, decência, coragem e vontade política para conservar aquele tesouro; sobraram descaso, corrupção, clientelismo, roubalheira e um caos urbano em que não há choque de ordem que dê mais jeito.

É particularmente demolidor para o nosso amor-próprio constatar que, nos últimos 50 anos, apesar dos pesares, quase todas as grandes cidades emblemáticas melhoraram numa coisa ou noutra, ainda que, no geral, a superpopulação venha cobrando o seu preço.

Paris continua sendo uma festa; Nova York perdeu as torres, mas é limpa e segura, a mãe de todas as novidades ; Berlim, em que pese a esquizofrenia das suas duas metades, ou quem sabe por isso mesmo, talvez seja a melhor capital européia do momento; Londres conseguiu despoluir o Tamisa, aquele ex-esgoto a céu aberto onde hoje nadam 94 espécies de peixe; Xangai teve o bom-senso de conservar o velho Bund mais ou menos como era e, no resto, transformou-se em ode à criatividade arquitetônica; Moscou revitalizou-se incrivelmente; Barcelona é um celeiro de idéias interessantes; Roma, apesar do trânsito infernal, é uma alegria; até Buenos Aires, logo ali, é ampla, limpa, cheia de vida, deslumbrante com seus parques e edifícios antigos bem conservados. Em todas elas pode-se andar com jóias e câmeras sem correr risco de vida; em todas elas se pode ser assaltado, sem dúvida, mas não se sai de casa com a sensação do perigo permanente que nos ronda aqui.

Triste não é constatar como essas e tantas outras capitais progrediram; é perceber que, por mais que se puxe pela memória, é difícil, se não impossível, encontrar cidade tão suja, tão abandonada e tão decadente quanto a nossa. Alguém consegue imaginar uma pichação na Quinta Avenida? Uma avenida central como a Rio Branco tão imunda e esburacada? Uma atração como a Vista Chinesa que não se recomenda aos amigos em visita? Dá vontade de sentar no chão e começar a chorar; mas desde que seja outro chão, em outro lugar, para não ser vítima do primeiro bandido.

* * *

Como nem só de misérias vive o mundo, às vezes se encontram ótimas surpresas em lugares completamente inesperados. Passo sempre em frente ao Flamengo, ali na Lagoa, e tudo o que vejo é o muro vermelho e preto, ótimo fundo para fotos diversas. No outro dia, por insistência das minhas amigas Heliana e Bernadete, mudei a rotina e entrei. Eu conhecia o Flamengo do tempo em que meus filhos eram crianças: o clube sempre foi simpático, mas não podia ser mais caído.

Pois mudou muito! Achei-o animado e bem cuidado. No terreno lá atrás onde havia um lixão tenebroso, com entulho e despejos de toda sorte, encontrei um viveiro de plantas vistoso, com horta e várias espécies de plantas ornamentais. O Braga, sócio que “assumiu” a área, me contou que a beleza do pequeno horto vai além do que se vê: meninos de comunidades carentes vêm sendo treinados como jardineiros, e alguns já conseguiram emprego fora do clube. No momento, sete garotos que antes faziam malabarismo no sinal estão lá, aprendendo, entre outras coisas, a importância das minhocas:

— Nós criamos umas minhocas vermelhas da Califórnia que são um espetáculo, — disse o Braga, empolgado, me oferecendo uma rosa perfeita que crescia num pé logo ali. — São alimentadas com restos de comida. Reciclamos tudo.

Luiz Paulo Segond, vice-presidente do chamado Fla-Gávea, acrescentou que, para que se abrisse espaço para as plantas, foram retirados de lá 200 caminhões de lixo. Gostei dele, um engenheiro tranqüilo que administra o clube como qualquer bom condomínio deve ser administrado: com a ajuda dos sócios, cada qual na sua especialidade e de acordo com o seu tempo e disponibilidade. Mais tarde, enquanto tomava um café na Boca Maldita, puxei papo com uma senhora a meu lado. Sandra Valéria, mãe da Barbara Lima, uma beldade de 14 anos vice-campeã brasileira de 100m borboleta, conseguiu fazer uma salinha para que as crianças possam deixar suas mochilas enquanto treinam, e para que as mães possam passar o tempo enquanto esperam pelos filhos. Não precisou de muito para isso: apenas um pequeno espaço, meia dúzia de cadeiras, uma televisão. E, ingredientes principais, boa vontade e falta de burocracia.

Há muitas idéias brotando por trás do muro que, hoje, olho com mais interesse. Quando os sócios se envolvem com um clube daquele tamanho e encontram estímulo para isso, há motivo para comemorar. Afinal, o que está acontecendo no Flamengo é, no fundo, um belo exercício de cidadania.


(O Globo, Segundo Caderno, 8.1.2009)

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