29.1.09


A edição especial de "o rei e o saltimbanco"


Pelos caminhos do mundo


Na semana passada, falei de Bollywood, uma das minhas taras cinematográficas secretas – isto é, secreta até então, porque agora todo mundo sabe. Mas tenho outras. Volta e meia passo noites e noites na internet, caçando DVDs exóticos -- menos na acepção de esquisitos ou bizarros do que na de estrangeiros, distantes de onde se habita. Às vezes, os dois sentidos se sobrepõem, e de repente me vejo diante de um filme cabeça de kung-fu malaio com legendas em japonês simplificado – mas, felizmente, isso é raro. De modo geral, pode-se confiar na descrição dos fornecedores. Agora mesmo, por exemplo, recebi o islandês “Nói” numa edição tailandesa baratinha, com legendas em chinês e inglês, despachada via Hong Kong. Depois eu conto que tal essa celebração da globalização a domicílio.

(Como é que eu entendo os menus? Não entendo, é claro! Mudo linguagem e subtítulos a partir do controle remoto, onde essas funções têm teclas específicas. Funciona assim no mundo todo, menos, aparentemente, nos Estados Unidos. Basta um passeio rápido pelos fóruns para ver que a maior causa de devolução de DVDs estrangeiros pelos americanos, pouco familiarizados com legendas, é que se enrolam quando saem da zona de conforto “play”, “pause” e “stop”. Um vendedor russo de quem comprei uns filmes vietnamitas até se deu ao trabalho de produzir uma pequena bula de tradução de menus – muito mais complicada, diga-se, do que os atalhos do controle remoto.)

Essas vias tortuosas de compra tem lá seus motivos, o principal sendo que a minha curiosidade é inversamente proporcional à minha conta bancária. Eu poderia ter encomendado “Nói” na amazon.com ou na fnac.fr – mas aí, entre filme, postagem e taxa de importação, acabaria pagando uma pequena fortuna. Nos países asiáticos, com exceção de Coréia e Japão, DVDs de toda origem saem a preços bem razoáveis, frequentemente mais baratos, com postagem e tudo, do que pagariamos aqui. Além disso, me divirto com a busca, altamente instrutiva, que me leva a trocar idéias e filmes com gente do mundo inteiro.

Nos fóruns de maníacos por DVDs, aliás, o Brasil é tido em altíssima conta, sobretudo agora, com a alta do dólar: nossas edições são boas, autênticas e muito baratas para quem vive lá fora. Era essa farra multicultural que as distribuidoras americanas queriam evitar quando dividiram o mundo nas famigeradas regiões para DVDs. No Brasil, região 4, quem não tem player aberto só pode recorrer às Américas Central e do Sul, ao México, à Nova Zelândia e à Austrália; nos Estados Unidos e Canadá funcionam apenas DVDs da região 1; e assim por diante. Em alguns países, como a Nova Zelândia acima citada, essa divisão foi declarada ilegal, por lesiva aos consumidores; mas a verdade é que em nenhum lugar está escrito que a vítima dessa divisão arbitrária é obrigada a manter seu player travadinho, do jeito que os chefões de Hollywood mandaram. O que não falta na internet é receita de liberdade audiovisual: uma busca de 0,14 segundos no Google me trouxe à tona 177.000 entradas para a expressão “destravar DVD”.

Percalço mais complicado é a velha questão dos padrões NTSC e PAL, que impede aparelhos de TV mais antigos de exibir filmes gravados num ou noutro deles. Se você quiser seguir a rota dos DVDs globalizados, certifique-se, antes de sair em campo, se a sua televisão lê os sistemas de cor PAL-M/N e NTSC. Em caso positivo, mande ver: o mundo está à sua espera!

* * *

Nisso tudo, um capítulo à parte é a cultura do DVD na Coréia do Sul. Até outro dia, eu tinha uma tremenda má vontade com os filmes coreanos, que achava violentos demais; ignorância minha, porque da virada do milênio para cá o país tem feito maravilhas em todos os gêneros. Inexplicavelmente, tirando um festival aqui ou uma sala de arte ali, este cinema competente e extraordinário não chega aos grandes circuitos de exibição mundiais.

Os coreanos tem tudo: diretores para todos os gostos, do personalíssimo Kim Ki-duk, autor do deslumbrante “Primavera, verão, outono, inverno e... primavera”, que pode ser encontrado em algumas locadoras, ao festejado Park Chan-wook, de “Oldboy”, o rei da pancadaria que tanto me estressa; tem comédias românticas e dramas quase latinos, como “My sassy girl”, de Park Chan-wook, e filmes de monstro impressionantes, como “O hospedeiro”, de Joon-ho Bong; tem uma guerra civil que dividiu o país e é material para obras-primas como “A irmandade da guerra” (Taegukgi), de Je-gyu Kang; e um passado que rende épicos como “O rei e o saltimbanco”, de Jun-ik Lee, de contornos quase shakespeareanos. Tem atores fantásticos, técnicos de primeira, uma cinematografia espetacular. Para coroar, tem também os DVDs mais bem produzidos do planeta: em parte alguma se fazem edições especiais tão caprichadas quanto as coreanas, avidamente disputadas por colecionadores. Além de transcrições impecáveis, extras, comentários e making ofs, há CDs com trilha sonora, cartões postais e livrinhos, tudo nas mais lindas embalagens que se possam imaginar. Até a Criterion perde.

Depois de, em menos de 20 anos, desenvolverem uma das mais criativas e avançadas indústrias tecnológicas a partir da clonagem sistemática de aparelhos americanos e japoneses, os coreanos viraram professores: pirataria se combate com preço e qualidade.


(O Globo, Segundo Caderno, 29.1.2009)

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