22.1.09



O outro caminho para as Índias


De todos os países que não conheço, a Índia é, disparado, o que mais me fascina; há anos faço planos mirabolantes, traço roteiros e imagino por onde começar e terminar a viagem dos meus sonhos. Da parede em frente à escrivaninha um enorme Ganesh em cores estrepitosas, cercado de flores e pontilhado de lantejoulas douradas, faz as honras do escritório, dando a falsa sensação de que o mundo é pequeno e cabe no bolso. “Não no seu, Cora Rónai!”, chia o talão de cheques de dentro da gaveta. Como o Ganesh é gentil e silencioso, e o talão de cheques é dado a violentos ataques de nervos que precisam ser apaziguados, os planos acabam adiados, e a Índia continua onde sempre esteve: no mundo dos sonhos.

“A miséria é assustadora”, alerta um amigo mais viajado. “O trânsito é incompreensível”, diz outro. “O sistema de castas é uma barbaridade”, avisa um terceiro. Sim, sim, já li o suficiente sobre o país para saber disso tudo; e, convenhamos, o nosso Brasil também não chega a ser exatamente um paraíso de igualdade de onde o viajante volte de alma leve. Em contrapartida, a Índia tem uma constelação de cientistas, matemáticos e escritores de primeira grandeza, um passado riquíssimo e uma arte que, para todos nós que vivemos os anos 70, faz parte de um imaginário de paz e felicidade.

Além disso, ela é o único país que, ao que eu saiba, conseguiu desenvolver uma linguagem cinematográfica única e original, sem paralelos no resto do mundo. O que sai de Bollywood pode parecer cafona, exagerado e sem sentido à maioria dos espectadores ocidentais, mas, uma vez ultrapassada a estranheza inicial, abre-se à nossa frente uma janela para um universo em permanente encanto, tão rico em contrastes quanto em sons e cores.

Bollywood, como a essa altura sabem até as poltronas do UCI, é um rótulo para o cinema indiano feito em Mumbai, a antiga Bombaim, misturando o nome da cidade e o de Hollywood. Ele se aplica ainda ao principal gênero produzido na região, que mistura canto, dança e melodrama. Os filmes costumam ter umas três horas de duração, os roteiros nem sempre são lá aquelas maravilhas e, para quem olha de fora, é difícil explicar a escalação de certos atores para determinados papéis – assim como, imagino, deve ser difícil para o público que não vive no Brasil entender como alguns de nossos astros e estrelas continuam em papéis românticos que já deveriam ter abandonado há anos.

“Realismo” e “Bollywood” são palavras que não podem ser usadas na mesma frase – e nem precisam. Os filmes de Mumbai preocupam-se, sobretudo, em agradar à platéia, cuja idéia de um bom espetáculo é bastante filme, momentos de alegria e tristeza, dança e canto à vontade. Nem é necessário que os atores cantem; para que o fariam, se há cantores que dão conta do recado melhor? De modo que, para os nossos ouvidos ocidentais, há um choque inicial quando o ator que acabamos de ouvir num diálogo abre a boca e começa a cantar com voz totalmente diferente; mas logo nos acostumamos, até porque, em muitos casos, a música é o ponto alto dos filmes. Dois detalhes que me chamam a atenção: como os trajes tradicionais convivem com roupas ocidentais, até nas mesmas cenas, e como o inglês é tranquilamente misturado ao híndi. Tudo é muito família e muito romântico: não há cenas de nudez, sexo ou violência explícitos. Para quem não agüenta mais a invariável dieta de pancadaria, tiroteios e perseguições da maioria dos filmes americanos, como a vossa cronista, Bollywood é uma mudança de paisagem das mais agradáveis.

É curioso observar como, apesar da sua aparente inconseqüência, os filmes indianos conseguem, tantas vezes, ter um forte conteúdo social. Para ficar num exemplo recente: há alguns dias assisti a “Baabul”, que, na maioria dos fóruns bollywoodianos que freqüento na internet, não é sequer considerado um grande filme (ao contrário de "Baghban", do mesmo diretor). Pois não é que, ao cabo dos seus 169 minutos (é um filme curtinho pelos padrões locais) eu estava me desmanchando em lágrimas, tocada pela sorte das viúvas indianas? Se já não queimadas nas piras de seus defuntos maridos, como antigamente, as coitadas continuam sendo discriminadas até por suas próprias famílias: muito triste! O fato é que Bollywood conhece bem a força da dramaturgia como ferramenta de inclusão social e arma contra preconceitos, e a vem usando com maestria.

Onde encontrar esse mundo tão diferente aqui no Brasil? Para quem fala inglês, nada mais simples: a internet é uma fonte inesgotável, já que as legendas são praticamente universais. No site de leilões e-Bay, muito confiável, os preços são razoáveis: entre filme e postagem, gasta-se coisa de dez dólares, às vezes menos. No Mercado Livre, site de leilões brasileiros, aparecem de vez em quando exemplares com legendas em português. Há até um ou outro lançamento brasileiro, como “Saawariya” (Apaixonados), disponível em lojas e locadoras.

Com a estréia de “Caminho das Índias”, porém, aposto que, em breve, teremos uma boa seleção de filmes de Bollywood no mercado.

Deixem-se conquistar: vale à pena.


(O Globo, Segundo Caderno, 22.1.2009)

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