10.12.08


(Esta é a coluna que sai amanhã)

Netcat, a gata macia

Parque Lage: depois das
jaqueiras, os gatos



Filha da Keaton, hoje matriarca da Família Gato, Netcat nasceu, junto com quatro outros gatinhos, entre os últimos minutos do dia 31 de dezembro de 1994 e os primeiros minutos do dia 1 de janeiro de 1995, naquele que foi, sem dúvida, o mais singular Réveillon da minha vida. Seus irmãos, rajados e carismáticos, arranjaram donos assim que desmamaram. A Net, tímida, malhada de preto e branco, na mais banal das configurações felinas, foi ficando: afinal, quem ia querer um gatinho tão comum?

Nós, naturalmente! O que lhe faltava em coragem e disposição para interagir com desconhecidos lhe sobrava em meiguice, numa reserva especial de carinho que guardava para o povo da casa. Morria de medo de estranhos, mas era tão gentil que só aprendeu a rosnar quando o Irineu veio morar conosco, ano passado. Como todo jovem gato, ele vive dando botes nos mais velhos, tentando puxá-los para brincadeiras. Apesar do jeito de filhote que nunca perdeu, Netcat, já uma senhora, não tinha qualquer disposição de dar trela a esse abuso, e fazia questão de deixar isso bem claro. Por outro lado, na hora de dormir, aceitava de bom grado que o Irineu se deitasse a seu lado e, algumas vezes, chegou a fazer-lhe uns cafunés.

Era boazinha, ingênua, discreta. Assim que ouvia o interfone, interrompia o que quer que estivesse fazendo para correr para um dos seus esconderijos secretos. Podia ser só o Zé dando um recado, mas também podia ser uma visita, e sua curiosidade não chegava ao ponto de esperar para tirar a dúvida.

Durante todos esses anos, foi minha fiel companheira de despertar. Bastava que eu me levantasse para que se dirigisse à mesa da sala, onde ficava à espera do pires de leite que bebia enquanto eu lia o jornal e tomava café. Depois, discutíamos as notícias do dia.

Anteontem repetimos, como sempre, o nosso ritual. Enquanto eu pegava o jornal na porta, ela esperava ao lado do pires. Não chegou a beber o leite com entusiasmo; o lote que comprei da última vez não fez muito sucesso. Ainda assim, por força do hábito, deu umas lambidinhas protocolares e foi, em seguida, para a janela, para aproveitar o primeiro sol realmente decente da temporada e observar o movimento lá embaixo. Quanto a mim, fui para o computador, dei telefonemas, cuidei de uma série de coisas. Mais tarde, quando saí, vi que estava deitadinha num dos sofás da sala, ao lado da Tutu e da Keaton.

Quando voltei passava da meia-noite e estranhei que não tivesse vindo me receber. A rapidez com que fugia dos estranhos era a mesma que tinha para vir à porta quando eu chegava. Encontrei-a no quarto, deitada na cama, gemendo baixinho. Em volta, os outros gatos faziam vigília.

Embrulhei-a numa toalha e corri para a clínica. Em vão: Netcat, a gata macia, morreu no caminho, nos meus braços, com a mesma discrição e meiguice que marcaram a sua vida.

* * *

Quem não convive com bichos não pode avaliar o quanto de alegria eles nos trazem, nem como são parecidos conosco. Cada qual tem seu jeito, seus hábitos, sua personalidade; cada um nos ensina alguma coisa, e contribui para que nos tornemos pessoas melhores e emocionalmente mais ricas. Por isso tenho tanta pena dos atuais administradores do Parque Nacional da Tijuca, a começar pelo senhor Ricardo Calmon, que, obviamente, nunca tiveram a felicidade desse convívio.

Não há outra explicação para a frieza e a crueldade que manifestam em relação aos gatos do Parque Lage – alguns velhinhos como a Netcat, que passaram lá toda a vida, outros recém-abandonados, mas todos devidamente castrados e vacinados, inofensivos, indefesos. E, agora, seriamente ameaçados de despejo e de morte, como se fossem meros objetos descartáveis.

Ora, há dez anos eles vêm sendo amorosamente cuidados pela Dra. Preci Grohmann, médica e professora aposentada, que trabalha voluntariamente para pôr um mínimo de ordem no caos: encaminha animais para adoção, anota as placas de veículos de pessoas que abandonam cães e gatos no parque, vai à Justiça e não poupa esforços para educar gente e salvar bichos. Ao longo desse tempo, mais de 800 gatos já encontraram lares graças a ela, que deveria, no mínimo, receber uma medalha. No mundo kafkiano da burocracia brasileira, porém, essa mulher admirável vem sendo implacavelmente perseguida por uma administração que quer dar fim aos gatos, como já deu fim às jaqueiras. Eliminem-se os trastes!

Se quisesse fazer algo de realmente útil à sociedade, o senhor Ricardo Calmon deveria organizar a fiscalização do Parque Lage para evitar o contínuo abandono de animais na área. E se quisesse ir além, e fazer algo de realmente útil em relação a si mesmo, deveria, em vez de perseguir a Dra. Preci, mirar-se no seu exemplo de cidadania, trabalho, amor e dedicação. Assim poderia um dia, quem sabe, tornar-se uma pessoa digna de admiração.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.12.2008)

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