10.5.07



De inútil paisagem a pequeno paraíso

Os quiosques transformaram a vida na Lagoa; apesar disso, estão sendo ameaçados


Há coisa de 20 anos, nosso velho prédio do Bairro Peixoto foi definitivamente condenado pela prefeitura. Estava adernando, e entre a frente e os fundos havia 60 centímetros de diferença. Se soltássemos uma bolinha de gude na sala, ela ia sozinha, correndo, para o quarto dos meus pais -- que, já à época, moravam no sítio.

Por causa das restrições de gabarito do Bairro Peixoto, o preço de venda sequer chegou a cobrir o preço do apartamento, grande, espaçoso, cuja geografia guardo até hoje na planta dos pés, e que ainda seria capaz de percorrer, de olhos fechados, numa outra dimensão.

Como é que se deixa uma casa assim?! Qualquer outro lugar seria pior, mais feio, menos carregado de lembranças e de boas vibrações. Eu só tinha uma saída: comprar um canto com uma vista tão espetacular para o lado de fora, que não me entristecesse com o que estava do lado de dentro.

E foi assim que, depois de percorrer dezenas de apartamentos de todos os tipos, vim parar na Lagoa -- na época infinitamente mais barata do que a Vieira Souto, bem mais barata do que a Avenida Atlântica, mais barata do que Ipanema e Leblon, e uma pechincha em comparação com a Urca.

Havia motivos para isso. Um era a mortandade de peixes que acontecia freqüentemente (mas o apartamentinho que achei ficava contra o vento); outro era a área em si, que simplesmente não existia. A Lagoa era uma vista magnífica com alguns clubes às margens -- e mais nada. Passear pelo entorno abandonado não era para os fracos de espírito. Não havia luz à noite, nem havia dia sem assalto.

Com o tempo, as coisas começaram a mudar. O canal foi dragado e os peixes passaram a morrer menos. E, justamente por aquela época, um maluco chamado Mário Moscatelli resolveu reconstituir o manguezal. Logo as garças estavam de volta, depois os biguás, os socós, os frangos d’água, os quero-queros, os bem-te-vis e joões-de-barro, as viuvinhas, os sabiás, os canários da terra... Há tanta vida na Lagoa, atualmente, que até capivaras já tivemos alegrando a vizinhança.

Mas o que mudou mesmo a paisagem do ponto de vista do lazer carioca foi a instalação dos quiosques, há dez anos. Na sua esteira vieram iluminação, movimento, segurança. Não foi fácil. Acompanhei passo a passo a luta desses valentes empresários, cada qual tentando oferecer algo diferente ao público, sem ajuda de qualquer espécie de quem quer que fosse.

Naturalmente, uns quiosques vingaram, outros não. Alguns até se transformaram em verdadeiros ícones da paisagem, como o Palaphita, o Café del Lago, o Arab, o Sushinaka, o Drink Café.

O trabalho, o investimento e a criatividade dos donos dos quiosques não pode ser subestimado. A prefeitura entregou-lhes uma área bonita mas perigosa, onde nada existia e da qual todo mundo desconfiava. Eles puseram mãos à obra. Pediram a construção de banheiros públicos, pediram melhor iluminação, pediram a relocação de quiosques que, por estarem na beira da avenida, não têm condições de funcionar.

Conseguiram? Pois sim! Todos têm interesse em aprimorar os serviços, mas quando não esbarram na inércia da prefeitura, esbarram com uma burocracia kafkiana, que não lhes permite fazer os consertos e melhoramentos que o poder público não faz.

O sucesso dos quiosques é indiscutível. A Lagoa virou uma das áreas mais valorizadas do Rio, a sua vida noturna é uma festa. E agora, que está tudo bonitinho, e que o pessoal já fez o trabalho duro, a prefeitura quer pôr os quiosques em licitação!

É óbvio que não interessa a nenhum freqüentador vê-los transformados em capitanias hereditárias; mas qual é a vantagem de ver tanto trabalho ir por água abaixo para recomeçar do zero?! Que se criem novas normas de arrendamento, que se inventem fórmulas de renovação justas, que se juntem as cabeças pensantes da administração, se é que as há -- mas que não se desmanche o que está dando tão certo por um reles capricho do prefeito.

Há abaixo-assinados nos quiosques do Parque dos Patins para que os freqüentadores que estejam contra esta arbitrariedade possam se manifestar.

* * *

Sim, eu sei, todos andam como baratas tontas atrás de presentes para o dia das mães. Desbaratizem-se! Há livros maravilhosos para resolver tão angustiante questão. "Meu pescoço é um horror", de Nora Ephron (Rocco), não está entre os mais vendidos à toa: é ótimo mesmo, e se a sua mãe ainda não leu, vá na fé. "O sonho da razão", de Anthony Gottlieb (Difel), uma história da filosofia ocidental da Grécia ao Renascimento, com mais de 500 páginas, pode parecer um presente de grego (sem trocadilho); mas é brilhantemente escrito, claro e compreensível, uma raridade no gênero. E um pequeno livrinho, que parece um envelope e que não é quase nada, é simplesmente tudo: "Fico à espera...", de Davide Cali e Serge Bloch, mais um Cosacnaify lindo de doer. Em tempo: não acreditem se o livreiro disser que é para crianças.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.5.2006)

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