24.5.07


As burkas cariocas

Elas são coloridas, deliciosas de vestir, cabem em
todas e, Allah seja louvado!, só usa quem quer


Quando a Rainha Elizabeth I morreu, em 1603, deixou cerca de 3 mil vestidos nas arcas que, então, faziam o papel dos guarda-roupas. Como nenhum era do gosto do Rei James I, que a sucedeu ("Queen James, King Elizabeth’s sucessor", diziam as más línguas), muitos acabaram vendidos aos teatros como figurinos, e não é improvável que alguns rapazes tenham representado as gloriosas princesas e rainhas de Shakespeare em trajes reais (duplo sentido, por favor). Como se sabe, até a segunda metade do século XVII a presença de mulheres nos palcos ingleses era impensável. Daí surgiu a frase "Não tem tu, vai tu mesmo".

Os vestidos da rainha não foram vendidos como figurinos por estarem ultrapassados, mas porque apenas a rainhas e altas figuras da nobreza era dado usar certas roupas. É possível que Elizabeth, que, de acordo com os relatos, manteve mais ou menos o mesmo corpo ao longo do seu reinado, tenha repetido um ou outro vestido em diferentes décadas, muito embora na era Tudor a moda já mudasse a uma velocidade jamais vista -- a cada 30 ou 40 anos inventavam-se novidades, para escândalo dos mais velhos.

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Acreditem ou não, tudo isso (com exceção das datas, que também não sou nenhuma wikipedia ambulante) me veio à cabeça no Rio Design Center, enquanto experimentava roupas e agradecia ao Senhor por viver numa época em que a moda muda várias vezes ao ano. Não sei se vocês lembram, mas há três meses era virtualmente impossível encontrar em qualquer loja roupa que não ficasse ridícula em qualquer pessoa acima dos 15 anos e 30 quilos.

A moda anterior, um pouco mais sensata, não era tão ridícula -- desde que se conseguisse vesti-la, mas isso exigia da compradora em potencial o máximo de 50 quilos para o manequim 46.

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Pois neste abençoado outono de 2007, pela primeira vez em muito tempo, mulheres mais redondinhas estão tendo a alegria de ir às suas lojas favoritas e, milagre!, lá encontrar roupas que lhes servem. A atual moda das túnicas e dos vestidos soltos pode não ser o que a indústria inventou de mais glamuroso, mas é, com certeza, fonte de inesgotável felicidade para uma legião de consumidoras, entre as quais, preciso dizer?, inclui-se a vossa cronista.

Ando comprando saias, blusinhas e vestidos na Farm, na Cavendish, na Totem, na Enjoy e na Cantão, algumas das que fazem as roupas que acho mais bonitas e gostosas para o dia-a-dia -- mas que, até ontem, só olhava nas vitrines, de longe, triste como cachorro diante de frango assado de padaria.

Claro que, quando o fim do mês trouxer as contas, essa farra toda vai se manifestar aos uivos no meu cartão de crédito. Mas, querem saber? Certas coisas não têm preço mesmo: no domingo passado, a Revista O GLOBO trouxe uma reportagem com o que as cariocas estão usando para tomar café-da-manhã na rua. Pois não é que lá, no meio de todas aquelas pessoas bonitas, bem-vestidas e descoladas, estava uma moça com um vestido igualzinho ao que comprei na Farm?!

Por acaso, ela também é jornalista, chama-se Renata Suter e usa o vestidinho exatamente como eu faço, com jeans por baixo: Renata, nosso vestido não é o máximo?!

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O que aqui é exceção -- a alegria de entrar numa loja e encontrar uma roupa que veste bem a um preço razoável, quando se passou dos 50 (anos e quilos) -- deveria ser regra. É regra nos Estados Unidos, onde lojas como a Banana Republic não deixam ninguém infeliz, é regra na Europa, onde redes como a H&M têm de tudo para todo mundo.

Aqui, entretanto, o mercado se divide entre as lojas para senhoras, de onde mulheres de 60 quilos saem com cara de 70 anos, ou as lojas fashion, que dão a impressão de não quererem ver seus lindos modelitos em gente pouco ornamental.

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Enfim, o que eu sei é que não vou deixar passar esta maravilhosa estação em branco. Vou deitar e rolar nas burkas cariocas, as alegres batas, túnicas e vestidos que, aleluia!, igualam magrelas e gordinhas na democracia e no prazer dos panos e dos estampados.

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O livro é pequeno, não chama a atenção e quem não estiver bem atento pode ignorá-lo. Mas não cometam essa distração! "As vozes de Marrakech", de Elias Canetti, é extraordinário, um relato de viagem atento e cheio de ternura, em ótima tradução de Samuel Titan Jr. Nele, ao mesmo tempo em que se vislumbra uma cidade já perdida no tempo -- foi escrito em 54, anos antes da globalização -- percebe-se, acima de tudo, a densa humanidade do autor, mergulhado num mundo de sons, imagens e sentimentos novos. São 111 páginas de encantamento, tratadas com o carinho habitual da Cosacnaify.

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Ah, em tempo: não deixem de assistir a "Um lugar na platéia", de Danièle Thompson, uma perfeita delícia de filme.


(O Globo, Segundo Caderno, 24.5.2007)

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