18.5.07


Cama-de-gato

No começo parecia uma bobagem, uma dessas gripes que a gente pega a toda hora. Tomei a vitamina C, o leite com mel, o chá de limão. Dois ou três dias depois, já não tossia e, contente, pensei que estava tudo OK. Quatro ou cinco dias mais tarde, no entanto, não conseguia fazer nada além de dormir. Ia para a cama antes das duas da manhã, cedíssimo para mim, e acordava às quatro da tarde, um exagero até pelos meus parâmetros.

Tomava café da manhã e me espichava no sofá para ler o jornal... e acordava às oito, com o jornal caído no tapete. Não tinha febre, não tinha dor de cabeça, não tinha nada, nada – além do sono e do cansaço paralisantes.

Fiz pesquisas na internet e descartei as possibilidades mais tenebrosas, aquelas que me teriam levado correndo ao hospital. Consultei os leitores do blog e todos mais ou menos chegaram à mesma conclusão a que eu chegara: virose. Vários insistiram para que eu fosse ao médico, mas estava cansada demais. Prometi que, assim que ficasse boa, iria sim, sem falta.

Um amigo me mandou um email, em particular, delicado e preocupado, perguntando se, por acaso, eu não estaria deprimida. Sei que a depressão é uma doença insidiosa; a possibilidade não me passara pela cabeça. Liguei para o Tom, que é médico, que me conhece bem:

-- Você acha que pode ser depressão?

O desalmado caiu na risada. Fiquei mordida. Por que não teria eu direito a uma boa depressão, como qualquer pessoa normal que sabe o que acontece no país e no mundo? Direito eu tinha e tenho, asseverou, mas, pelo visto, depressões não se resumem a um sono mortal. Pedi mais informações mas o Tom disse que eu estava desconcentrada demais para que ele perdesse seu precioso tempo me dando uma aula sobre questões psíquicas: afinal, eu confiava nele ou não? Confiava, claro. Ainda assim ficou lá atrás, no fundo da cabeça, aquela dúvida chata.

E, enquanto isso, eu só fazia ir da cama para o sofá e do sofá para a cama. Escrevi as duas últimas crônicas como se estivesse num filme B: me arrastava até o escritório, a duríssimas penas escrevia um parágrafo e acordava um tempo depois, com uma letra repetida ao infinito, onde quer que estivesse meu dedo no momento do apagãooooooooooooooooooooooooooooooooo.

O compadre Gravatá, irmãozinho do meu coração, ligou para saber como estava me sentindo. Descrevi os sintomas.

-- Oxente, menina, isso na Bahia não é doença, não! Venha comer um vatapá aqui em casa e você vai se sentir outra pessoa...

Os gatos, radiantes, acompanharam todo o processo com sinais de grande entusiasmo. Para eles, estava claro que, afinal, haviam conseguido me explicar o sentido da vida.

Foram quase vinte dias de absoluta inutilidade. Nem um notebook e uma impressora novos que tenho para testar conseguiram me arrancar daquele marasmo absurdo. Perdi toda a gloriosa seqüência de feriados em que as últimas semanas foram tão pródigas, provavelmente perdi alguns amigos porque devo ter marcado encontros aos quais não só não compareci como não dei satisfação, mas, como Deus é bom e não desgosta de todo de mim, também perdi um quilo e meio.

A vida é assim, feita de pequenas felicidades.

* * *

Na quinta-feira da semana passada, acordei como se nada tivesse acontecido. Levantei da cama e, para minha total surpresa, não senti vontade nenhuma de me espichar no sofá. Aproveitando tanta e tão inesperada disposição, fui resolver a quantidade de problemas que se acumularam durante a doença do sono. A tarefa mais agradável era passar numa loja Tim, para pegar o celular novo a que fazia jus graças às minhas contas tonitruantes; a verdade é que nem canja de galinha me restaura tão rápido quanto um celular novo.

Depois de passar horas debruçada sobre os modelos à minha disposição, optei por um SE W810 branco, não só por ser bom e muito bonitinho, mas por, maravilha das maravilhas, ter duas minúsculas caixinhas de som bem poderosas. O brinquedo não ficou comigo tempo suficiente para que pudesse passar para ele a agenda de endereços: três dias depois caiu ou foi tirado da minha bolsa sem que eu percebesse. As caixinhas de som, órfãs, me olham até hoje da mesa de cabeceira.

A vida é assim, feita de pequenas infelicidades.

* * *

Quanto aos gatos, não reagiram bem à minha recuperação. Depois de ter dado todas as demonstrações de que finalmente percebera para que serve a vida -- ou, pelo menos, a sua maior parte -- como é que eu fazia a desfeita de ter tal recaída?! Para deixar bem clara a sua opinião a respeito do assunto, fizeram pipi nos jornais e nas revistas que eu ainda não tinha lido.

A vida também é assim, feita de pequenas brigas sem motivo.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.5.2007)

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