16.9.05



Rumo a Budapeste: impressões de viagem

No meio do caminho, a violência do Rio manda notícias
e quebra o encanto das férias



Como a Europa é um continente civilizado onde tudo funciona feito relógio suiço, Bia e eu resolvemos alugar um carro para ir até Budapeste. Sairíamos de Berlim, passaríamos a noite em Praga, daríamos um giro pela cidade e seguiríamos adiante. De acordo com o mapinha fornecido pelo utilíssimo site da Michelin, a viagem duraria precisamente 4h28min, e custaria exatos 23 euros e 51 centavos em gasolina.

Infelizmente, não se fazem mais relógios suíços como antigamente: a viagem durou mais de seis horas, e isso porque aproveitamos o tapete das estradas e metemos o pé. Já as 5h25min prometidas entre Praga e Budapeste estenderam-se por bem umas sete, que nos custariam, em tese, 31 euros e 84 centavos.

Ainda não conseguimos fechar as contas da gasolina, porque passamos por três moedas diferentes do começo ao fim da viagem; mas se o guia está tão certo em relação ao dinheiro quanto ao tempo, prefiro continuar não sabendo...

Ainda assim, alugar o carro e enfrentar os 900 quilometros que separam Berlim de Budapeste foi uma grande idéia. Há formas mais rápidas, baratas e cômodas de se chegar a um destino, mas nenhuma nos daria a mesma sensação de estar entrando Europa adentro. As estradas são impecáveis, a paisagem é linda e tudo é muito familiar para mim, da comida á linguagem corporal das pessoas. Tudo é muito como lá em casa, gostos, jeitos, hábitos.

* * *

Por falar nisso, um dos hábitos europeus que mais me reconforta é o cuidado com o desperdício, evitado na medida do possível. Em quase duas semanas de viagem não vi um só prato de papel; talheres de plástico só mesmo as pazinhas de sorvete.

Na Alemanha, campeã de hábitos ecológicos saudáveis, a maioria das bebidas ainda vem em cascos de vidro. Mesmo nos parques onde bebidas são servidas em copos de plástico, este plástico é como o do tupperware, lavável e reutilizavel. Paga-se até depósito pelo copo, para se garantir que voltará ao quiosque de origem, em vez de emporcalhar o ambiente..

O reverso disso -- o desperdício desenfreado e absurdamente poluidor -- é das coisas que mais me perturba quando vou aos Estados Unidos. Não há planeta que aguente tanto lixo, nem sensibilidade que não se choque com tanta riqueza sendo posta fora quando há tamanha necessidade no mundo.

* * *

Outras coisas boas que observamos por aqui:

-- Não há uma farmácia em cada esquina;

-- Também não há uma loja de comida a cada dois passos, a menos que se esteja numa área de barzinhos;

-- As porções de comida e bebida têm o tamanho da fome ou da sede de um bípede normal. Não se vêem baldes de pipoca, sorvetes em dez camadas e copos monstruosos de refrigerante. Já os canecos de cerveja são descomunais, mas isso, garantem os especialistas, é outra coisa;

-- Há mais escadas do que elevadores;

-- As pessoas levam sacolas consigo quando vão às compras. Em toda parte há gente com sacolinhas das mais diversas levando o jantar para casa. Podem-se pedir sacos plásticos nas lojas, naturalmente, mas para quê poluir o mundo desnecessariamente?

* * *

O meu húngaro, milagre dos milagres, ainda funciona -- mas é esquisito. Em geral, quando se chega a uma cidade estrangeira, o problema não é fazer as perguntas, mas entender as respostas. Pois o meu caso é o contrario: esqueci como se fazem as perguntas, embora entenda as respostas perfeitamente. Comprar um simcard húngaro e configurar os dois celulares para enviarem torpedos e fotos foi uma autêntica conquista lingüística.

* * *

No domingo, aproveitando as ruas vazias, arriscamos sair com o carro. Demos uma volta grande, e estacionamos perto do Parlamento. De lá, fomos ao número 10 da Alkotmany Utca, onde ficava a livraria do meu avô, onde meu Pai passou toda a sua infância e juventude. A loja era no térreo; a casa da família no último andar.

O edifício, construído na virada do século passado, tem um pátio interno, para onde dão as portas e algumas janelas dos apartamentos, e lindas grandes de ferro. Para entrar, usei o mesmo expediente de vinte e tantos anos: assim que alguém abriu a porta para sair, aproveitei o embalo e entrei, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

E é.

Bia e eu exploramos todos os cantinhos, tiramos várias fotos e ficamos, nem preciso dizer, muito emocionadas, imaginando o cotidiano do meu Pai, dos meus avós e dos meus tios subindo e descendo as escadas, entre a livraria e o apartamento.

Pensamos nisso, e pensamos também em como deve ter sido terrível para todos abandonarem tudo de um momento para o outro, indo cada qual para um canto, sem saber se algum dia iriam se ver novamente.

Meu Pai nunca mais viu seus avós, que moravam ali perto, seu Pai e seus dois irmãos; e só reviu o velho edifício quase um quarto de século depois, ao voltar à Europa pela primeira vez depois da guerra.

Para mim, não há Memorial do Holocausto que se compare a este prédio aparentemente comum, onde um dia viveram um casal de livreiros e os seus seis filhos.

* * *

Algumas notícias nos chegaram do Brasil, mas a única que conseguiu atravessar a bolha mágica das férias foi a da morte do porteiro da noite, o César, que tantas e tantas vezes nos abriu a porta, sempre gentil, a despeito dos nossos horários bizarros. Ele foi assassinado só assim, à toa, como costuma acontecer no Rio.

Depois disso, a viagem perdeu o encanto. Passou a ser impossível andar por essas ruas tranqüilas, que ainda pertencem aos cidadãos, sem sentir raiva das nossas autoridades, pena da nossa gente e saudades do rapaz humilde e trabalhador, que mandava dinheiro para a mãe em Pernambuco e só queria tocar a sua vidinha em paz.


(O Globo, Segundo Caderno, 15.6.2005)

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