Pára de complicar!
Na sua edição de 3 de setembro, a revista "The Economist" deu uma descascada no conceito de "casas inteligentes", ou "casas do futuro", como volta e meia são apresentadas. Observava, com razão, que tudo o que se tem feito nesse sentido no Vale do Silício é a busca de alternativas para o mercado corporativo, que já está consolidado, e onde não existem mais lucros astronômicos a conquistar a curto prazo.O problema, porém, é que o usuário final está muito bem como está, e não quer mais tecnologia. Quer menos.
A "casa do futuro" é mesmo uma obsessão de todos os laboratórios de tecnologia que conheço. Todos, sem exceção, têm espaços que simulam o que seria a vida num espaço "inteligente" e conectado, onde tudo converge para uma estação de controle e onde todos os problemas se resolvem, magicamente, a um estalar de dedos. É tudo muito interessante e acho até que, em casos excepcionais, pode funcionar.
Dizem que na casa de Bill Gates sensores reconhecem as visitas pelo crachá e automaticamente tocam suas músicas favoritas; mas sinto arrepios só de pensar nessa espécie de Neverland hi-tech onde visitas têm que usar crachá.
Na vida real, onde nove em cada dez pessoas têm problemas para programar o videocassete, o conceito esbarra naquele pequeno detalhe que tanto atrapalha o desenvolvimento da alta tecnologia: o ser humano, este bípede tonto que prefere acender e apagar a luz através de interruptores antiquados a usar o controle remoto de uma estação central, em que há um programa sofisticadíssimo especialmente desenvolvido para isso.
Na época em que esta "Economist" chegou às bancas, eu estava, coincidentemente, visitando mais uma "casa do futuro", onde, por acaso, vi duas ou três coisas que me pareceram, mais do que viáveis, até cobiçáveis. Eu estava em Eindhoven, Holanda, num dos laboratórios da Philips -- e isso é que fez a diferença.
É que, ao contrário dos outros laboratórios que já visitei, orientados para um mundo que gira em torno de computadores, este desenvolve, tradicionalmente, eletrodomésticos. E descobri que a visão de quem faz computadores e a de quem faz aparelhos para o lar é muito diferente.
A "casa do futuro" da Philips não impressiona como ficção científica, mas tem um fio-terra que mexe naquele ponto do cérebro que leva direto ao talão de cheques. A primeira coisa que vem à cabeça de qualquer um que vê uma imensa tela de plasma de alta definição é: "Eu quero!".
Outra pequena maravilha da casa era um espelho de banheiro onde uma tela inobstrusiva num dos cantos pode apresentar o telejornal, conectar-se diretamente ao canal do tempo na web ou, horror dos horrores, mostrar o peso da criatura que o contempla. A mágica se faz através de um sensor posto no tapete, combinado a um leitor de altura que, à primeira vista, parece apenas um minúsculo e inocente facho de luz azul.
Esta inconveniente propriedade do espelho, nem preciso dizer, pode ser desligada a um simples toque de tela. Na verdade, toque de margem de tela, para evitar que os dedos a manchem. Bacana, né?
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No seu discurso de abertura da IFA, uma das maiores feiras mundiais de eletroeletrônicos, que se realiza anualmente em Berlim, Rudy Provoost, CEO da Philips, voltou a bater na tecla da usabilidade:-- Já vimos muitas novidades tecnológicas em que a tecnologia é um fim em si mesma; quando, na verdade, a simplicidade é que deve estar no centro da experiência do consumidor. Os resultados das nossas pesquisas e o nosso conhecimento do que os consumidores desejam indicam que o público está cansado. Cansado de não saber gravar um programa de televisão, cansado de gastar horas lendo um manual de instruções, cansado de complicações desnecessárias. A verdade é que as nossas vidas já são complexas demais. Queremos simplicidade no nosso relacionamento com a tecnologia, uma tecnologia que dá conta do serviço em vez de chamar a atenção para si mesma, que dá conta do recado sem que a gente sequer perceba que está lá.
Convenhamos: não há como discordar disso.
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Na verdade, esta simplicidade é o Santo Graal de todo mundo da área, mesmo dos alpha geeks do Vale do Silício. Conceitos como "computação ubíqua" ou "computação pervasiva" vêm sendo debatidos há décadas; no legendário Parc, da Xerox, a "computação invisível" é objeto de estudos desde princípios dos anos 80.A idéia por trás de tudo isso é sempre a mesma: uma tecnologia tão integrada à vida humana que "desapareça" no ambiente -- mais ou menos como os interruptores de luz, ou mesmo os aparelhos de TV.
Os domínios do tempo, que é o senhor da razão, também se estendem ao mundo da alta tecnologia. Um dia, ela estará tão desenvolvida que sequer será tida como alta tecnologia, mas sim como um fato corriqueiro da vida. Assim foi com a água corrente, com a luz elétrica e mesmo com as canetas esferográficas -- todas, em seu tempo, objeto de maravilha e deslumbramento.
Por enquanto, sempre encantada com a tecnologia que me cerca, continuo achando feitiçaria tirar fotos do celular e mandá-las direto para o blog, de onde quer que esteja, ou parar num caixa eletrônico no Centro de Budapeste, inserir um cartãozinho vagabundo, apertar três botões e ver dinheiro jorrar aos borbotões na minha mão -- esquecida da mágica de verdade que vou ter que fazer quando voltar para casa e tiver que cobrir o rombo no banco...
(O Globo, Info etc., 19.9.2005)
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