Alugando bicicletas em Berlim
Da janela do hotel eu via as bicicletas bonitas, de alumínio, dipostas num cantinho em frente à estação de metrô de Potsdamer Platz. Também via Berlim até onde a vista alcança, e era longe nesses lindos dias de outono, sem uma nuvem no céu. Nenhum morro ou colina, sequer montanha à distância, apenas as avenidas largas, os edifícios e monumentos. Olhava para as bicicletas e para essa planura toda, pensava "Feitas umas para a outra!"... e seguia para o ônibus que nos levava, diariamente, ao centro de convenções.Pelas janelas do ônibus, aliás, eu via outras, semelhantes, soltas pelas esquinas. Era claro que eram bicicletas de aluguel -- todas iguais, com destaques em laranja -- mas, estranhamente, nunca via ninguém por perto para cuidar da transação.
Quando os dias de trabalho chegaram ao fim, e a Bia chegou do Brasil para passarmos juntas uma semana de férias, decidi esclarecer o mistério. Ainda agora, três dias depois, de malas feitas para prosseguir viagem, continuo me sentindo uma criatura poderosa e cheia de marra por ter conseguido realizar a complexa operação do aluguel de duas bicicletas pelo celular. A intuição me veio quando fui vê-las de perto e descobri que, além de ter um número do lado, elas se chamam Call-a-Bike.
-- Ahá! -- exclamei para a Bia. -- Aqui está uma missão sob medida para o chip alemão do telefone.
-- Tem certeza que não é melhor a gente ir numa loja de aluguel de bicicletas? Têm umas cinco recomendadas no guia.
-- Claro que não! A tecnologia foi feita para isso, para facilitar a vida das pessoas, o que você está pensando?!
Convencida dos poderes do meu telefonino com simcard local, chamei o tal número... e me deparei com a voz mecânica e maviosa de um atendimento automático em alemão. Fiquei pendurada até aparecer um humano do outro lado. Perguntei se ele falava inglês.
-- A little bit, yes.
Esta é uma expressão de rotina. Todos os berlinenses que falam inglês falam "a little bit".
Lancei um olhar vitorioso para a minha filha e perguntei como era o lance. Simplíssimo: a gente fornece nome, número do cartão de crédito e alguns dados básicos, e recebe um código para destrancar o cadeado eletrônico. Quando enjoa de andar, larga a bicicleta numa esquina ou numa estação de metrô, tranca direitinho e telefona para lá novamente dizendo onde a deixou.
O preço era razoável: sete centavos de euro por minuto, num máximo de 15 euros por dia.
Apesar do barulho da esquina em que estávamos e de umas falhas na linha, a negociação foi bem tranqüila, até o rapaz pedir o meu endereço. Não, não o do hotel em Berlim; o do Rio, mesmo. Pergunto: vocês já tentaram soletrar E-P-I-T-A-C-I-O P-E-S-S-O-A em inglês para um alemão?
Quando eu disse "Avenida" no telefone, a Bia sentou no chão e, pronta para uma longa espera, teve um ataque de riso.
-- "Avenida", just like "Avenue" but ending with ái-di-êi...
Mãe de um filho que gosta de pilotar aviões, consegui me lembrar de algumas letras do que eu achava que era o código da aviação, mas que o Tom Taborda explicou depois, lá no blog, que é o Código da NATO: Indian, Tango, Alfa, Charlie, Oscar... mas esqueci completamente que D é Delta e P é Papa, e de E e S já não fazia a menor idéia. A Bia se lembrou do Papa por linhas tortas, mas isso não adiantou muito:
-- Pope!
-- Hope?
-- No, no. P, as in Paul.
-- Bowl?
-- Nein! P as in... panzer!
-- Ah, gutt. P, as in Pablo.
-- Yes!
Nem imagino como terá sido escrito o meu endereço no registro do Call-a-Bike, mas o fato é que, apenas 45 minutos depois, lá estávamos nós, felizes da vida, pedalando naquelas maravilhas, verdadeiras Mercedes sobre duas rodas.
* * *
Berlim é uma cidade perfeita para andar de bicicleta. As ciclovias são bem demarcadas e acompanham as ruas e, muito importante, os carros respeitam os ciclistas. Outra vantagem é que o clima é seco, de modo que, mesmo com o maior calor, é possível rodar direito, sem suar em bicas.Antes de nos pormos a caminho, Bia e eu estudamos o mapa com muita atenção, traçamos uma rota meticulosa.... e erramos tudo. Somos péssimas de mapa, e nenhuma faz a menor idéia da posição dos pontos cardeais. De acordo com o mapa, precisávamos seguir para o Norte. Mas onde seria o Norte?!
Paramos um grupo de três jovens alemães para fazer esta pergunta meio ridícula. Eles viram o pin no meu colete.
-- Ah, vocês são do Brasil?! Que coincidência, nós também!
Eram catarinenses. Estão aqui há quase um ano, falam um alemão perfeito -- mas também não sabem onde fica o Norte. Em suma: como nós duas, um bando de desnorteados.
Mas foi, ainda assim, um lindo passeio.
Passamos cinco vezes pelo Checkpoint Charlie depois descemos pelas margens do rio Spree, demos num canto sem saída, subimos umas pontes e, finalmente, acabamos o dia na Alexander Platz, onde vimos uma extraordinária revoada de pássaros ao anoitecer.
Deixamos as bicicletas na estação de metrô, telefonamos para o Call-a-Bike, ficamos sabendo que a nossa conta era de dez euros e uns quebrados por cada uma e, cansadas mas contentes, pegamos um táxi de volta para o hotel.
Nenhuma estava disposta a arriscar o mapa do metrô.
(O Globo, Segundo Caderno)
Não estranhem a repeticão: voces leram aqui antes... ;-)
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