29.5.03



Me incluam fora dessa!

Quando eu disse ao motorista do táxi que vinha para O Globo, ele me olhou pelo retrovisor e perguntou:

-- A senhora conhece São Paulo? Tem parentes ou amigos lá?

Estranhei a pergunta mas respondi. Sim, claro; conheço São Paulo bem, tenho muitos amigos lá.

-- Então a senhora está por dentro do que acontece em São Paulo?

Sim, suponho que sim, como qualquer pessoa bem informada.

-- Pergunto: a senhora sabe quem é o maior bandido de lá?

Vários nomes me passaram pela cabeça, mas algo me disse que não era bem a essa espécie de bandido que o motorista se referia. Bandido com carteirinha de bandido, que desconta como bandido e não vai à Hebe, nem sai na Revista Caras, não, não conheço nenhum.

-- A senhora acha que lá tem menos bandido do que aqui?

Não, claro que não! Não sou especialista no assunto, mas, até por uma questão estatística, São Paulo deve ter mais bandido do que o Rio.

-- Pois é. Agora, os daqui o Brasil inteiro conhece, né? Elias Maluco, Marcinho VP, Uê... O Fernandinho Beira-Mar, então, virou celebridade, viaja mais que a seleção e sai no jornal todo dia. Foi até capa da Veja. Então, sinceramente – veja bem, eu não tenho nada contra a senhora, nem contra o jornal – mas de quem é a culpa pela violência no Rio? A senhora me desculpe, mas a culpa é da imprensa. Se vocês pararem de falar sobre isso e de botar foto de bandido na primeira página a violência acaba no dia seguinte.

* * *

É mole ouvir isso?! Mas essa foi apenas a variante mais criativa – e mais direta -- da temporada. Ultimamente não consigo abrir o jornal ou ligar a televisão sem que alguém não me responsabilize pela violência ou não me cobre providências urgentes. A moda é – mais uma vez! -- atribuir o descontrole da situação à sociedade, em geral, e à classe média, em particular.

Não importa que a gente passe o dia ralando, faça hora extra e costure para fora; somos os vilões da vez, os supostos esteios de um sistema que oprime os pobres coitados que, por isso, retalham os desafetos e queimam ônibus com gente dentro. Tentar dizer qualquer coisa contra essa extraordinária teoria nos torna, além de culpados, burgueses desprovidos de qualquer sensibilidade social.

Acontece que eu não visto esta carapuça. Estou farta de ouvir isso! Cheia!

A minha parte eu faço como posso e, sobretudo, como me tosquiam: só para o imposto de renda, trabalho 132 dias por ano. Além disso, parte incontabilizável do que sobra vai para os 283 impostos estaduais, municipais e federais embutidos no que consumimos. Tudo para que o estado possa desempenhar a contento as suas funções.

Moro bem? Moro. Tenho uma ótima biblioteca, móveis confortáveis e uma adorável família de gatos. Trabalhei muito para conquistar isso, e mais ainda para manter minha vida nesse padrão de razoável conforto. Voto, desde que me permitiram votar; vigio o que fazem os meus representantes, não consumo drogas, não jogo papel na calçada e protesto com toda a veemência quando algo me parece errado.

Mas estou, para os demagogos de plantão (que possivelmente pagam apenas salário mínimo à empregada), na banda podre do milênio, aquela que têm deveres sem ter direitos, acusada de se esconder atrás das grades dos prédios e dos insulfilms dos carros porque, ora vejam, tem medo de ser assaltada pela banda boa -- aquela, das “vítimas da sociedade”, que têm todos os direitos sem que se possa cobrar delas qualquer dever.

Estou me achando o elo mais fraco de uma corrente que não ajudei a construir.

* * *

A verdade é que é mais fácil jogar a responsabilidade pela falência do estado nos milhões de cidadãos honestos que tentam sobreviver como podem, sob essa alcunha coletiva de “sociedade”, do que procurar e combater as reais – e, tantas vezes, politicamente incorretas -- causas do descontrole geral. Assim como, mal comparando, é mais fácil tungar os velhinhos do que correr atrás dos grandes devedores do INSS.

É, também, muito perigoso.

Cada vez que alguém diz ou escreve que “a culpa é da Sociedade” ou que “está na hora da Sociedade se mobilizar”, está dando a um estado francamente omisso e conivente a desculpa para tirar o seu da reta. Botando o nosso.

* * *

E, já que estou nisso: crime organizado, aqui? Desculpem os entendidos, mas, a meu ver, o crime deixou de ser organizado (se é que um dia o foi) há tempos! “Crime organizado” era a máfia dos filmes do Coppola. O que vemos no Brasil de hoje e, mais especificamente, aqui no Rio, é um crime tão desorganizado quanto a polícia que tenta combatê-lo: uma série de atos estúpidos, violentos, sem causa aparente, sem correlação, sem má consciência.

E, de preferência, no horário escolar.

(O Globo, Segundo Caderno, 29.5.2003)

PS -- Por acaso, o Zuenir Ventura também escreveu lá no jornal sobre imprensa e violência.

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