5.5.11

Assim, à toa



Um dia, conversando com o Xexeo na redação, notei o olhar de espanto que duas repórteres novinhas nos lançavam. Estavamos tentando nos lembrar se algo que discutíamos ocorrera há 20 ou 21 anos, e reconheci, naquele olhar, o mesmo espanto com que, recém-chegada à profissão, eu havia testemunhado os inesquecíveis Pompeu de Souza e Castelinho comentando, como fato recente, um acontecimento que, àquela altura, já fazia parte dos livros de História.

-- Não podemos falar sobre uma quantidade obscena de tempo dessas em público -- observei. – Essas meninas mal devem ter isso de idade! Estão nos olhando como se fossemos dinossauros.

De modo que estabelecemos, entre nós dois, que toda vez que fizessemos referência a algo ocorrido conosco no tempo em que os bichos falavam, o acontecimento não teria mais de oito anos. Oito anos é um período relativamente remoto, mas ainda assimilável pelas gerações X, Y e Z. Ser baby boomer, como nós somos, está ficando cada vez mais antigo, e só deve piorar.

Essa introdução toda para dizer, enfim, que, há muitos anos, assim tipo uns 
oito, eu estive na Usina de Itaipu, uma das obras mais grandiosas que já vi. Fui conversar com os engenheiros, ganhei um tour completo de presente e tive, suponho, uma idéia bem próxima das dimensões reais da coisa.

Numa das salas de controle paramos diante de um grande mapa topográfico da região, que estudei durante uns minutos.

-- Vem cá, se acontecer alguma coisa com a usina, a água inunda a Argentina? – perguntei.

-- Não há perigo de acontecer nada com a usina, ela foi muito bem construída e tem mecanismos de segurança infalíveis.

-- Mas só por hipótese. Digamos que ela seja bombardeada, por exemplo, ou atingida por um meteorito?

-- Num caso extremo desses, inunda sim.

-- E a água chega a Buenos Aires?

-- Como não chega? – respondeu o engenheiro, com indisfarçável orgulho na voz. -- A água acaba com Buenos Aires! Mas leva bem uns dois dias até fazer o percurso, de modo que não tem problema, dá para evacuar todo mundo.

A tranqüilidade com que aquela hipótese do fim de Buenos Aires foi aceita nunca me saiu da cabeça, e olhem que já lá se vão bem uns oito anos. Voltei para casa feliz de residir usina acima – e nunca mais pisei em Buenos Aires sem me lembrar de Itaipu.

* * *

Também há muito tempo, não oito anos mas quase isso, um amigo, que trabalhava como intérprete para o exército, foi designado para acompanhar técnicos e militares estrangeiros que vieram conhecer uma instalação, digamos, sensível. No caminho, topou com um supervisor que engolia as palavras e tinha uma dicção péssima. Pediu-lhe, então, que falasse devagar, para que ele, intérprete, tivesse tempo de traduzir o que estava sendo explicado.

-- Nós te-mos um  pro-to-co-lo mui-to ri-gi-do pa-ra a e-mer-gên-cia di-á-ria – disse, obedientemente, o supervisor.

Meu amigo informou aos visitantes que as daily emergencies estavam bem cercadas.

-- Daily emergencies?! – exclamaram os de fora, assustados. – Vocês têm emergências diárias?!

Meu amigo voltou-se para o supervisor.

-- São emergências diárias?

-- Sim.

-- Mas isso não é possível! Nós não temos emergências nunca!

-- As emergências acontecem mesmo todos os dias?

-- Claro que não! Nunca tivemos nenhuma emergência!

Moral para intérpretes: não confundir emergência diária com emergência de área.

* * *

Tem também aquela historinha que é famosa entre os profissionais do ramo, e que envolve uma usina atômica soviética (sim, aconteceu há uns oito anos), um grupo de inspeção francês e uma professora de francês de Moscou, chamada às pressas para fazer o meio de campo.

Terminada a visita às instalações, todos se reuniram na sala de controle principal, e um francês perguntou o que os soviéticos fariam em caso de blackout – palavra que a boa senhora traduziu como lhe parecia evidente.

-- O camarada estrangeiro pergunta o que se faria em caso de falta de luz.

Os russos se entreolharam.

-- Ora essa. Usaríamos lanternas, como todo mundo.

Os franceses confabularam entre si diante da surpreendente resposta. Não sabiam muito bem o que os russos queriam dizer com lanternas: seriam geradores? Uma nova tecnologia soviética?

-- Qual é a capacidade dessas lanternas?

-- Umas 72 horas, mais ou menos – responderam os russos, começando a se irritar com o que lhes parecia crítica velada aos péssimos serviços de energia locais.

72 horas! Os franceses ficaram curiosos: geradores auxiliares com capacidade para segurar uma usina nuclear durante 72 horas, que coisa extraordinária! Ainda assim, o que fariam os soviéticos terminado este prazo?

-- Desculpe, camarada, mas o que é que vocês podem fazer depois desses três dias?

-- Acender uma vela e enfiar...

A professora não traduziu a frase completa. Percebeu que havia um ruído sério na comunicação, pôs panos quentes no diálogo e, depois disso, nunca mais confundiu falta de energia com falta de luz.

* * *

Minha amiga Jussara compilou algumas jóias do Twitter sobre a morte de Osama Bin Laden:

“Será que o jornal impresso de amanhã já vai ter a morte do Osama ou vai decretar somente a morte do jornal impresso? @silviolach” (Continuamos vivos, e bem vivos, Silvio!)

“Obama mata Bush. De inveja. @tati_bernardi”

“Matar o Bin Laden é a Copa do Mundo dos americanos. @prosopopeio”

“Caixa preta da Air France, Osama Bin Laden... só vou dormir depois que encontrarem o Ulysses Guimarães. @microcontoscos”

“Imagina daqui a 20 anos seus filhos escrevendo Obama e Osama na mão para não esquecer a ordem de quem matou quem pra prova. @anacardoso93”


(O Globo, Segundo Caderno, 5.5.2011)

Nenhum comentário: