3.3.11

Outras histórias de Saint Martin



Fiquei de contar a história da rádio do padre, em Saint Martin. É uma historinha singela, um caso sem maior importância, bem adequado a uma ilhota onde, entre um tufão e outro, os dias correm iguais.


Quando o reverendo Cornelius Charles chegou a Saint Martin, encontrou uma igreja vazia e uma rádio sem audiência. Aquilo não fazia sentido. Não havia tantas estações de rádio na ilha para que ninguém ouvisse a sua, nem tantas atrações que pudessem afastar os fiéis das obrigações religiosas. E lá se pôs ele em campo, a ver se descobria o que estava acontecendo.


Conversa vai conversa vem, soube que seu antecessor tinha grande gosto pela própria voz, e passava os dias a fazer sermões nas ondas da rádio. Os ouvintes mal escutavam e logo mudavam de estação; e os fiéis fugiam da igreja, porque se os sermões pelo rádio já eram chatos, ao vivo certamente seriam insuportáveis.


O reverendo tinha um trabalhão pela frente: mudar a imagem da estação e trazer o seu rebanho de volta à igreja. Decidiu, então, por no ar o que conhecia de mais bonito: a música de Bach.


-- Não há nada que eu conheça que mais aproxime os homens de Deus do que a boa música, -- me disse ele então, e lembrei de uma entrevista que tinha feito, anos antes, com o violoncelista Paul Tortelier. Entre outras coisas, ele me disse uma frase que nunca esqueci:


-- Bach é a minha crença em Deus.


-- Exatamente! – exclamou o reverendo.


Aos poucos, ele foi acrescentando outros compositores ao elenco da rádio. Falava pouco entre um disco e outro, lembrava o horário da missa e transmitia recados de um paroquiano a outro, serviço da maior utilidade naqueles tempos pré-internet.


Quando nos conhecemos, a rádio já era um sucesso. A igreja não estava propriamente bombando, mas tinha um bom número de fiéis, admirável até, considerando-se o sol que fazia lá fora e a delícia daquelas praias.


Procurei o padre numa viagem subseqüente, e fui informada de que havia sido transferido para Guadalupe. Passaram-se 17 anos desde então. Há duas semanas, um amigo cavucou a internet e descobriu que o reverendo Cornelius Charles está de novo em Saint Martin, à frente da rádio Voix Chrétiennes. Fiquei com uma vontade enorme de dar um pulo até a ilha só para ouvi-lo cantar, tomar um café e perguntar como vão as coisas.

* * *

Um dia passei por Marigot na volta de uma saída de mergulho, e vi um cartaz irresistível numa das joalherias do cais: “30% de desconto em todos os relógios”. Minha intenção era ir direto para o hotel, mas 30% de desconto nos relógios era um assunto sério. Não tenho mania de relógio, não coleciono relógio, mas sempre fui apaixonada por um relógio em particular chamado Reverso, fabricado pela Jaeger-le-Coultre. Eu estava de havaianas, com aquele cabelo espetado de quem volta do mar e uma camiseta XXXXL da Autodesk – um look, em suma, que não se usa nem para trocar a areia dos gatos, quanto mais comprar relógio em Marigot. Mas vá que a liquidação acabasse antes que eu voltasse à cidade, ou que se acabassem os relógios?


Parei o carrinho miúdo e amassado na primeira vaga e fui à joalheria. Por acaso, havia um Reverso exatamente como eu queria já no balcão que dava para a rua. Fiz sinal para uma das vendedoras. Ela me olhou de alto a baixo com indisfarçável desdém, fez sinal com a mão como quem diz “Espera aí” e continuou no papo com a colega. Esperei. Depois de um tempo fiz sinal de novo, e ela de novo me fez sinal para esperar. Nisso chegou à loja um casal americano de meia-idade, e as duas prontamente deixaram de papo e se puseram ao seu dispor. Ora, assim também não!


-- Será que uma de vocês podia me atender? – reclamei. -- Estou esperando há séculos.


A vendedora que me mandava esperar veio até o balcão, cheia má vontade.


-- O que é?


-- Eu quero aquele relógio.


-- É muito caro.


-- E eu lá perguntei o preço? Quero. Aquele. Relógio. Há alguma coisa no meu francês que você não esteja compreendendo?


A moça pegou o relógio me olhando de banda, e foi até o caixa. Meu coração estava aos pulos. Eu não tinha idéia do preço da coisa.


-- Quero ver.


O relógio me foi entregue num clima de completa desconfiança. Era lindo, e exatamente como eu queria, em aço inoxidável, não muito grande, a perfeição com ponteiros. Entreguei-o de volta mas, quando ela começou a embrulhá-lo numa embalagem genérica, chiei de verdade e mandei vir a gerente.


-- Não estou sendo bem tratada nessa loja. Cadê a caixa original do relógio?


A gerente apareceu com a caixa, perguntou o que havia acontecido, ouviu a novela inteira, pediu desculpas e ofereceu um café. Aceitei com o ar altivo de quem compra relógios importantes todo santo dia; lá dentro, uma taquicardia louca. Não saber o preço já era o de menos. Pior seria se o meu cartão fosse recusado depois daquele número todo.


Pois não é que o cartão foi lindamente aceito?! Naquele momento, me senti vestida de Chanel da cabeça aos pés. A gerente e a vendedora se desmancharam em desculpas enquanto eu assinava a nota e descobria, afinal, o preço do meu tesouro: cerca da metade do que teria custado na Tourneau, em Nova York, onde eu sempre o namorava.


-- Aceito as desculpas de vocês, mas podem anotar as minhas palavras: nunca mais compro relógio nenhum com vocês.


Cumpri a promessa. É verdade que nunca mais comprei relógio algum, mas também ninguém precisa saber disso.




(O Globo, Segundo Caderno, 3.3.2011)

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