Do que é que precisamos para sobreviver? No nível mais elementar, água, comida, abrigo dependendo da ocasião e do hemisfério, cobertura contra sol e chuva. Os demais mamíferos do planeta se viram, no mais das vezes, sem os dois últimos itens. Indo um passo além, panos que nos protejam, curas para dores e machucados, histórias para contar e ouvir. Vasilhames para guardar a comida. Alguma forma de organização social para ordenar o convívio. Um adorno corporal, uma pintura rupestre.
Quando abrimos os olhos, já saimos das cavernas, ficamos sofisticados e, há milênios, corremos atrás do supérfluo. Estamos no mercado: em Istambul, em Helsinki, no Cairo, em Xangai, em Milão, ali mesmo na Senhor dos Passos. Cercados de quinquilharias que, depois de inspecionarmos com cuidado, levaremos para casa, onde passarão conosco uma breve temporada antes de encontrar morada final numa das pilhas de lixo que sufocam a Terra.
Nada sobre o planeta se reproduz com a alarmante velocidade da tralha. Patinhos de borracha, fitas do Bonfim, amuletos de toda sorte, canecas das mais variadas cores e formas, flores artificiais, enfeites de fibra óptica, mini-aspiradores que não funcionam nem quando nascem, relógios, ímãs de geladeira, cristais, buttons, canetas que escrevem quatro dias e morrem no quinto, canetas que até escrevem direito mas das quais ninguém troca a carga, modelos de carros e de aviões, espelhos, esculturas medonhas representando o que existe e o que não existe, bandejas, porta-documentos e, invariavelmente, uma quantidade de chaveiros que desafia o crescimento demográfico. A lista não tem fim.
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Sou tomada por uma vaga sensação de pânico quando vejo pilhas de tralha, seja em antiquários, mercados populares, lojas milionárias ou camelôs. Em dias de propensão filosófica, imagino milhões de chineses trabalhando dia e noite, imagino compradores e exportadores, imagino guindastes, estivadores e cardumes de navios cruzando os oceanos, carregados de containers abarrotados. Imagino também importadores e distribuidores, armazéns, fabricantes de sacos plásticos e de etiquetas, estoquistas, contadores e gerentes, e sinto vertigem diante do número de pessoas que trabalham como formigas para que miniaturas da Torre Eiffel cheguem, a bom preço, às mãos dos turistas em Paris.Assumo minha parcela de culpa: tenho uma miniatura da Torre Eiffel, escondida na estante onde ficam os exemplares da National Geographic. Na verdade, tenho uma quantidade ridícula de coisas, superior, provavelmente, a tudo o que todos os meus antepassados, juntos, jamais conseguiram reunir. E é tudo tralha! Nada que faça a fortuna dos filhos quando eu morrer, nada que possa ser cobiçado por amantes da arte ou de velharias, porque o eventual valor do que me cerca está ligado a momentos emocionais, e é intransferível.
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Na segunda-feira, andando pela Avenida Copacabana e olhando as velhinhas que compravam bricabraques nas lojas, pensei na inutilidade daquele empenho. Pensei nos apartamentos modestos aos quais se destinavam as coisas, e na indiferença dos herdeiros que, mais ano menos ano, vão por tudo aquilo fora.Sei que cada velhinha que compra um bibelô para a sala faz parte da engrenagem universal da economia, e sei que, se todas as velhinhas deixassem de comprar bibelôs, muita gente ficaria desempregada, da Avenida Copacabana a cidades no interior da China. Essa economia até tem lógica, mas não faz nenhum sentido.
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Pode ser que, em termos de informação antropológica, a tralha tenha seu valor, e acabe sendo objeto de estudo daqui a mil ou dois mil anos – supondo que a humanidade dure até lá. Quando lotes perdidos de quinquilharias forem descobertos ali pelas bandas do Paraguai, arqueólogos traçarão retratos minuciosos da nossa civilização, baseados em miniaturas de esqueletos fosforescentes, capas para iPhone recobertas de cristais Swarowski e chapinhas para escova progressiva. Ainda bem que não estaremos mais por aqui, porque algo me diz que vamos ficar mal na fita.* * *
Nem tudo o que admiramos nos museus foi produzido como arte. Parte considerável das coleções mais importantes do mundo é feita de objetos de uso diário, corriqueiros, que frequentemente não passavam de besteiras para os proprietários. Acho essa tralha milenar fascinante em pequenas doses; em grandes quantidades, ela me dá a mesma sensação de pânico dos nossos excessos. Na ala egípcia do Museu do Louvre, por exemplo, que nunca vou cansar de visitar, fico devidamente impressionada com as estátuas e os sarcófagos, mas viajo de verdade nos estojinhos de instrumentos de escrita, nos potes de maquiagem e de perfume, uns poucos objetos em que as marcas de uso continuam vivas.Em compensação, demorei a ter coragem de reconhecer, até para mim mesma, que nada me aborrecia mais num museu do que a antiga exposição de anforas gregas do Met, em Nova Iorque (foi modificada em 2007, mas ainda não vi como ficou). Lá estavam elas nas vitrines, solenes, enfileiradas às duzias, parecidas demais uma com a outra para despertar o meu olhar inculto e letárgico. Resultado: não tenho qualquer dificuldade em imaginar um cidadão do Peloponeso exasperado com a quantidade de anforas velhas da despensa, mandando os escravos porem fora toda aquela tralha.
O desapego, afinal, não foi inventado ontem.
(O Globo, Segundo Caderno, 28.01.2010)
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