14.1.10

À sombra do calor



Mal “Cem anos de solidão” saiu da gráfica, em 1967, e tascaram-lhe o rótulo de “realismo mágico”. A expressão, criada pelo venezuelano Uslar Pietri, já estava em uso há vinte anos, e caía como um laço nas tranças do romance, com seus fios de fantasia e cotidiano de tal maneira misturados que não se sabe onde termina uma e começa outro -- se é que essas fronteiras vulgares valem para livro tão extraordinário.

Atualmente a obra-prima de Gabriel Garcia Marquez é considerada o ponto alto do realismo mágico. Nunca se escreveu nada igual e acho improvável que se venha a escrever; mas hoje, com incontáveis viagens à Amazônia no lombo, discordo do rótulo. Quem já se meteu pela floresta, subiu e desceu pelos rios e viveu a sensação alucinógena de ter o cérebro lentamente cozido na calota craniana, sabe que “Cem anos de solidão” é um romance hiper-realista.

Debaixo de 50 graus, tudo pode acontecer, e tudo acontece. Ou não; mas não faz diferença. Pouco antes de ficar bem-passado, naquele estágio que as churrascarias definem como “do ponto para bem”, o miolo joga a toalha metafórica e desiste de processar a realidade.

Sou e não sou, estou e não estou. Ao mesmo tempo em que quer parar, o corpo prossegue de teimoso e olha-se a si mesmo de uma outra dimensão, até onde vou? como se acompanhasse, com grande curiosidade, uma formiga carregando uma folha maior do que pode.

Entre as coisas que me atraem na Região Norte, está essa experiência de calor radical, que só existe lá, ainda que termômetros marquem temperaturas iguais, ou mesmo mais elevadas, em outras latitudes. Reparem, contudo, que atração nem sempre é sinônimo de agrado.

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Em 1984, John Huston filmou “Under the volcano” (“À sombra do vulcão”, baseado no romance homônimo de Malcom Lowry). Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, no dia dos mortos, o consul inglês no México, alcoólatra em fase terminal, vive suas últimas horas em Cuernavaca.

É um desempenho assombroso de Albert Finney que, no papel de Geoffrey Firmin, já não sabe o que é verdade e o que é alucinação, e caminha a passos largos para a catástrofe.

“À sombra do vulcão” é considerado um dos mais pungentes retratos do alcoolismo jamais apresentados pelo cinema, mas para mim, acima de qualquer coisa, é o único filme que consegue transmitir a sensação claustrofóbica do calor úmido e abafado, da sauna a céu aberto que nem a noite é capaz de desligar.

“O inferno é meu habitat”, diz Firmim a certa altura, e a gente acredita.

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Uma vez cheguei a Manaus num dia de recorde de temperatura. O asfalto derretia e prendia as sandálias; ondas de calor erguiam-se do chão, nada estava em foco. A água que se bebia, litros e litros, evaporava em suor antes de chegar aos rins: ao fim do dia, tudo o que os coitados conseguiam produzir era três gotas de um xixi escuro e malsão. Os manauaras manifestavam uma espécie de orgulho perverso do tempo inclemente, e eu entendia. Um fenômeno daqueles era único, excepcional, coisa para Guinness Book.

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Em Teresina mal se respirava, e não se via uma nuvem no céu. Passamos por um açude quase seco e o motorista contou que, naquela manhã mesmo, daquele restinho de água, saíra uma jibóia que matara um cachorro. À tarde, nos disseram que uma jibóia enorme saíra do açude e comera um bezerro. À noite, falava-se de uma jibóia descomunal que engolira um cavalo.

Até hoje não tenho certeza se havia uma jibóia, três jibóias ou jibóia nenhuma. Para a minha cabeça assada ao sol, qualquer hipótese era igualmente aceitável.

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Não existe lógica a mais de 40 graus. No desfile do Lucas Nascimento, uma caixinha de papelão branco esperava pelos fashionistas nas primeiras filas. Dentro havia uma luva preta tricotada de um dedo só que ia do polegar ao cotovelo. Olhei para aquela estranha peça de vestuário, virei, revirei, e não consegui juntar lé com cré; a jibóia turbinada do Piauí fazia mais sentido.

Sim, era a apresentação de uma coleção de inverno; e sim, no inverno, aparentemente, é possível olhar para lãs e congêneres sem desgosto. Mas mesmo nesta madrugada de quarta-feira, em que o termômetro marca 30 graus, escrevo isso sem convicção, baseada apenas em vagas memórias e nos álbuns de fotografia, que mostram a família de casaco em ocasiões do passado. No sábado, na fornalha da Fashion Rio, a palavra inverno não correspondia a uma estação do ano, mas a um compêndio completo de realismo mágico.

Na passarela, as modelos iam e vinham cheias de tricôs, arrastando sapatos pesadíssimos, com o entusiasmo de quem caminha para o cadafalso; ainda assim, para todos os efeitos, foi um lindo desfile, que agradou em cheio a quem entende do riscado. Como todo mundo, gostei das cores, dos detalhes e do acabamento, mas não tenho distanciamento crítico suficiente para ver tanto agasalho num calor tão acachapante.

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A incongruência climática foi a tônica da festa, mas a culpa não foi da Fashion Rio, que fica linda e charmosa no Cais. Todo mundo sabe que moda de inverno se vê no verão, e vice-versa. O que não se vê há tempos é um calor desses, a vida social derretida junto com a maquiagem: abraço nem pensar, beijinho de longe, oi até logo, que calor é esse? a minha é com gelo, sorte sua que pode ir embora.


(O Globo, Segundo Caderno, 14.1.2010)

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