21.1.10

Haiti: recapitulando



A maior tragédia do Haiti é a sua História. Frei Bartolomé de las Casas, que chegou a Hispaniola em 1502, registrou em detalhes o extermínio dos povos que viviam lá. Ele foi um dos primeiros cronistas do Novo Mundo, e sua “Brevísima relación de la destrucción de las Indias” é dos livros mais tristes de ler. Escrito em 1542, dá conta de inúmeras ilhas caribenhas já completamente despovoadas, a breves quatro décadas da chegada dos conquistadores. Os horrores que descreveu, no entanto, são só o começo.

Logo os índios foram substituídos como escravos pelos negros, e os espanhóis encontraram dignos rivais para a sua crueldade nos franceses. Como foi amplamente relembrado nos últimos dias, o Haiti, que divide Hispaniola com a República Dominicana, foi a primeira nação independente da América Latina. Mas é importante notar que o que levou a essa independência não foi um vago sentimento de liberdade, discutido entre quatro paredes por revolucionários, e sim o desespero muito concreto de escravos, que não agüentavam mais as condições brutais a que se viam submetidos.

Construir um país do nada é difícil mesmo quando se têm educação, preparo e apoio externo. Aos rebeldes do Haiti, porém, faltava tudo, mesmo um passado comum: a população era constituída de gente oriunda de diferentes partes da África, de alguns descendentes de escravos já nascidos no Caribe e de uma pequena elite miscigenada, que tinha certa educação, certas posses e todos os preconceitos dos seus ancestrais europeus.

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Quando a independência foi proclamada, em 1804, depois de uma década de conflito, o Haiti, que chegou a produzir 40% do açúcar do mundo, estava devastado. Nada existia mais. Disputas internas agravavam a situação, que desandou de vez quando a França exigiu o pagamento de 150 milhões de francos a título de indenização, liquidando de vez com as chances de prosperidade do país recém-nascido. O resto do mundo achou isso muito normal.

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O primeiro presidente haitiano sagrou-se imperador assim que assumiu. Foi assassinado por colaboradores pouco depois. Dois deles dividiram o país entre si, criando um clima de hostilidade que durou quase 20 anos. No ínterim, um proclamou-se rei e o outro dissolveu o congresso, tornando-se presidente vitalício. A febre amarela, contudo, resolveu o seu caso rapidamente. O rei permaneceu mais um tempo no poder, mas suicidou-se às vésperas de um golpe de estado. O sucessor do presidente vitalício reunificou o país após a morte do rei, invadiu a atual República Dominicana, ocupou toda a ilha e comprou uma animosidade com os vizinhos hispano-parlantes que dura até hoje. Foi deposto por um golpe de estado, seguido por breve período parlamentarista. O sistema não pegou. Em meio ao caos, um antigo herói da rebelião dos escravos tomou o poder, nomeou-se imperador e foi deposto após uma década de tirania. O golpista que o depôs ficou quase dez anos no governo, que transferiu civilizadamente para um sucessor, logo deposto por um cavalheiro que não teve melhor destino. Com o novo governo, porém, paz, sossego e tranqüilidade fizeram uma inédita aparição no Haiti, que pode se dar ao luxo de tomar pé, cuidar de si, crescer e viver sem maiores sustos durante quatro décadas.

A boa fase acabou em 1911 com mais uma revolução, e com uma sucessão de governantes de alta rotatividade; em 1915, os Estados Unidos ocuparam o país, e lá permaneceram até 1934, manipulando fantoches políticos. Na sequencia vieram duas eleições democráticas seguidas de dois golpes de estado; em 1957 foram realizadas novas eleições, vencidas por um camarada chamado François Duvalier.

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O que estava péssimo ficou pior. Duvalier, que passou para a História como Papa Doc, foi um dos ditadores mais sinistros do século passado, ao qual, convenhamos, não faltaram candidatos na categoria. Fazia uso aberto do vudu e de magia negra, que apavoravam a população, para mantê-la sob controle; e não hesitava em torturar e matar dissidentes. O trabalho sujo era levado a cabo por sua milícia pessoal, os Tonton Macoute, que, sem contrato ou salário, viviam do que conseguiam roubar ou extorquir de suas vítimas.

Quando Papa Doc morreu, em 1971, dezenas de milhares de haitianos haviam sido exterminados, e a maioria dos profissionais liberais havia deixado o país, que nunca mais conseguiu se recuperar da fuga maciça de cérebros.

Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, herdou a presidência do pai aos 19 anos. Mais interessado em se divertir do que em governar, roubou tanto que chamou a atenção mesmo lá e, em 1986, acabou deposto. Numa das grandes injustiças históricas do nosso tempo, continuou se divertindo à grande na França, onde vive até hoje.

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A História recente segue o mesmo padrão. Nos últimos 24 anos, desde a queda de Baby Doc, o Haiti teve 17 governantes. Presidentes, golpes de estado, denúncias de corrupção e intervenções estrangeiras se sucedem, num padrão que seria tedioso se não fosse trágico.

Daqui a pouco, o terremoto vai sair do noticiário. As cenas de destruição se tornarão triviais, e a humanidade voltará suas atenções (e seus donativos) para outro ponto qualquer do planeta. Tomara que, dessa vez, os países ricos tomem tenência, continuem presentes e dêem um passo a mais. Comida, água, roupas, remédios, casas e hospitais podem fazer muito pelo Haiti, mas só escolas podem salvá-lo.


(O Globo, Segundo Caderno, 21.1.2010)

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