31.12.09

Meu ano, em três tempos



Houve uma crônica que eu quis escrever várias vezes ao longo do ano, a começar pelo momento em que soubemos que a Bia estava grávida. Não sou avó de primeira viagem, mas como Emília, Joe e Alicia moram nos Estados Unidos, um bebê Made in Brazil é grande novidade na família. A crônica não saiu porque a Bia não só não gosta de ser personagem como, ainda por cima, achava pouco auspicioso falar tão cedo da gravidez.

Depois houve a ultrassonografia que revelou os gêmeos, e que deu origem ao apelido de Tatuís que ambos têm até hoje; e, um mês depois, a que mostrou que eram menino e menina. Filha grávida é uma crônica ambulante, mas vocês sabem como é, não se deve contrariar as grávidas. De modo que fiquei quieta no meu canto, sofrendo em silêncio com o desperdício de material.

Fábio e Nina nasceram no dia 1 de agosto, lindos, roliços e completamente diferentes um do outro. Ele tem olhos escuros, é risonho e de boa paz; ela tem olhos azuis e é uma autêntica ferinha. Agora, que já descobriram que podem produzir outros barulhos além do choro, Fábio se diverte com monossílabos e risadas, enquanto Nina se espanta com os próprios gritos, dignos da Castafiore.

Sei que todas as avós dizem isso, mas é a mais absoluta verdade, até porque eu jamais mentiria para vocês: os dois são o que há de mais bonitinho, especialmente quando estão juntos.

Mãe de adultos há muito tempo, eu já tinha me esquecido de como é um bebê. Por causa da distância, não pude acompanhar o crescimento dos filhos do Paulinho: eu os conhecia zero quilômetro e, quando nos encontrávamos de novo, já eram criancinhas. Hoje Emilia é mais alta do que eu, e Joe e Alicia vão pelo mesmo caminho.

Os Tatuís, porém, são parte constante do nosso cotidiano, com seus carrinhos, suas fraldas, suas mudas infindáveis de roupas. Cada progresso circula pela família em tempo real (Beberam suco de laranja lima! Comeram banana! Descobriram os próprios pés!) e é como se fosse algo único, inédito, quase milagroso.

É difícil imaginar que cada um de nós, e cada pessoa na multidão, e cada ser humano que jamais andou sobre a Terra, fez as mesmíssimas coisas, e foi igualmente frágil e inocente. Mais difícil ainda é pensar que, num piscar de olhos, os dois serão adultos, terão as mesmas atribulações de todo mundo e, provavelmente, acharão irritante e ridícula a mania da vó de chamá-los de Tatuis.

Fábio e Nina foram a grande alegria de 2009.

* * *

Na última crônica que escrevi antes de viajar para a Índia, contei que Irineu, o frajola carismático que encontrei no estacionamento do jornal, estava gravemente doente. A situação era pior do que imaginávamos. Poucos dias antes da viagem, meu gatinho querido perdeu a batalha contra a leucemia felina.

Como disse o Riq Freire, ele foi um gentleman até na hora de ir embora; eu não teria tido coragem de embarcar deixando-o tão mal.

Cada bicho que se perde é uma grande dor, mas há um mínimo de consolo na morte que vem depois de uma vida longa e bem aproveitada. No caso do Irineu, tão carinhoso, engraçado e novinho, nem isso. No final, nos raros momentos em que se sentia bem, ainda brincava como o filhotão que era. O que mais gostava de fazer era pegar, no ar, as bolinhas de papel que jogávamos para ele, afogá-las uma a uma no bebedouro e, orgulhoso, trazer-nos a “caça”, bem encharcada.

Irineu foi a maior perda quadrúpede da minha vida, e a grande tristeza de 2009.

* * *

A grande aventura do ano foi, é claro, a viagem à Índia, sobre a qual vocês leram um bocado aqui e talvez ainda venham a ler, de tanto que gostei do país. A verdade é que ainda não consegui chegar direito. Parte de mim continua perdida naquele mundo de cores e de vacas sagradas, sonhando com o deserto de um lado e com os mercados abarrotados de gente do outro. Sinto falta dos camelos, das cabras e dos elefantes, dos bandos de macacos mansos, da cantoria constante dos pássaros e da tranqüilidade com que bípedes e quadrúpedes convivem por toda a parte. Estou me sentindo órfã da liberdade de ser, que na nossa sociedade obcecada com juventude e com uma forma impossível inexiste para quem tem mais de 30 anos e 40 quilos, e da felicidade de andar no meio da multidão levando dinheiro, câmeras e celulares em absoluta segurança.

Outra grande vantagem da Índia é que ela fica longe, muito longe. No interior, então, o Brasil não chega a ser nem uma miragem. Assim, pude evitar a fúria e a vergonha de ver o meu país – o meu país! -- receber o pária Ahmadinejad com honras de estado.

* * *

O ano termina mal para o Parque Lage, um dos poucos lugares públicos do Rio onde se podia interagir com felinos mansos, sadios e bem tratados. Depois de uma década de trabalho e de cuidados, ao longo da qual conseguiu lares para centenas de adultos e filhotes que lá foram largados, a Dra. Preci Grohman foi vencida pela insensibilidade burocrática da atual administração, que acha que o grave problema do abandono de animais se resolve com meia dúzia de frases de efeito. Dos cinqüenta bichanos que lá viviam, dez ainda precisam, desesperadamente, de quem os leve para lugar seguro: no próximo dia 9, só Deus sabe o que lhes acontecerá.

Que tal começar 2010 fazendo uma boa ação e, ao mesmo tempo, adotando uma companhia maravilhosa? O email da Dra. Preci é precih@terra.com.br.


(O Globo, Segundo Caderno, 31.12.2009)

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