24.12.09

Choque de estupidez



Há coisa de meio século, a prefeitura construiu, um pouco antes do Corte de Cantagalo, uma série de prédios para os seus funcionários. O tamanho dos apartamentos varia. Em comum, eles têm a vista espetacular, um certo excesso de pilastras, vigas e pilotis, o acabamento modesto e – importante -- garagem inexistente. Imagino que tenham sido vendidos em condições especialíssimas, mas, com o passar do tempo, muitos dos antigos funcionários, seus primeiros proprietários, se desfizeram dos imóveis, afugentados pelo IPTU, por taxas de condomínio cada vez mais caras e, talvez, pela própria Lagoa, que então sofria com mortandades de peixes e com a degradação da orla.

Consegui comprar meu apartamento justamente por causa dos seus defeitos. Quem gostava da Lagoa mas tinha dinheiro de verdade ia para os prédios novos, mais elegantes, com acabamento de luxo e, sobretudo, com vagas de garagem na escritura. Os problemas da arquitetura e do acabamento foram resolvidos pelos novos moradores: no meu prédio e nos prédios vizinhos já não há praticamente apartamento que não tenha passado por grandes reformas. As entradas sociais, antes bisonhas e mal acabadas, ganharam novos materiais e espaços, e ficaram bonitas. Infelizmente, com o aumento da violência, ganharam também as indefectíveis grades, que dão aos cidadãos cariocas a falsa noção de que estão seguros dentro de casa.

O que nunca se resolveu, por não ter mesmo solução, foi a questão das garagens, embora os carros estacionados na calçada não incomodem os transeuntes, nem mesmo mães com carrinhos de gêmeos. Os prédios mais chiques, que têm apartamentos maiores e um lote vazio entre si, avançaram sobre este espaço lateral. Aqui em frente, o jardim perdeu uma parte do terreno para abrir espaço para os automóveis e, ainda assim, alguns passam a noite ao relento. Isso não teria nada de mais se, volta e meia, marginais não quebrassem os vidros dos carros para roubar CD players.

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Escrevo sobre a Lagoa, mas a situação é a mesma em toda a cidade. Onde quer que haja prédios antigos, há problemas de estacionamento. A razão não chega a ser mistério: quando a maioria desses prédios foi construída, carro era um luxo dispensável. A cidade era razoavelmente bem servida de ônibus, bondes e lotações, e se havia distância entre os pontos e as casas dos seus usuários, havia também segurança para que eles pudessem cobrir essa distância a pé, a qualquer hora do dia ou da noite.

Hoje o transporte público do Rio é uma piada, em que pesem inaugurações festivas de metrô, e ninguém mais está garantido, mesmo no percurso de uns poucos quarteirões. Detesto carro, não tenho carro e não entendo para quê alguém quer carro em Paris ou em Nova York, mas entendo muito bem quem tem carro no Rio.

É por isso que fico furiosa quando vejo a prefeitura rebocando carros a três por quatro em lugares onde eles não atrapalham ninguém, sobretudo na calada da noite. Não há nada de “educativo” na medida, que não favorece ninguém, exceto os donos dos reboques, os cofres da prefeitura e quem quer que lucre financeiramente com isso.

Uma cidade que funciona deve oferecer alternativas viáveis aos seus habitantes antes de partir para a estupidez. Em vez de rebocar os carros de moradores de prédios antigos, que não têm culpa das levas de corrupção municipal que permitiram a construção de tantos edifícios sem garagem, as autoridades deviam estudar soluções reais e bem intencionadas para o problema. Do jeito que está, o cidadão que paga IPTU e IPVA, mas que só entra nos planos do governo na hora do reboque, está sendo triplamente lesado.

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Na semana passada a editoria Rio trouxe duas manchetes muito eloqüentes a respeito da situação aqui perto de casa. A primeira, na página 13, dizia “Choque de ordem reboca carros na Lagoa”. A segunda, na página 21, dizia “Motoristas são assaltados em sinais da Lagoa”. Entre outras coisas, a matéria sobre os reboques informava que a operação foi iniciada nos primeiros minutos da madrugada, e que apenas em frente ao número 2.142 foram levados oitos automóveis.

Ninguém merece assaltos e reboques simultâneos, mas é a isso que estamos condenados no circo do senhor Paes. Dá para acreditar na boa fé de uma operação de reboque que vai ao ar depois de meia-noite?! A sua finalidade, está claro, não é desimpedir a passagem para os pedestres, até porque ninguém tem mais coragem de andar pelas ruas da cidade de madrugada. Quando morei no 2.142, bem antes de vocês serem nascidos, o problema já existia: são 48 apartamentos para cerca de dez vagas. Curiosamente, o prédio, em si, nunca foi assaltado. Vai ver que a prefeitura tem reserva de mercado.

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Achei muito educado o governador dar prazo de 48 horas para os traficantes saírem do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho. Operações policiais feitas de surpresa são cheias de imprevistos, e causam incômodo tanto para a polícia quanto para os bandidos. O prefeito podia se mirar neste exemplo e demonstrar a mesma consideração com os donos de automóveis, em vez de obrigá-los a sair da cama no meio da noite para dar voltas a esmo enquanto o reboque está na área.

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Vocês desculpem. Eu preferia escrever uma crônica mais apropriada ao clima natalino, cheia de amor pelo próximo e de outros sentimentos edificantes, mas não há Natal que resista a tanto choque.

Fico devendo.


(O Globo, Segundo Caderno, 24.12.2009)

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