Quando comecei a escrever crônica aqui no Segundo Caderno, em janeiro de 2003, o Merval me deu um conselho: evitar falar de gatos e de internet. Levei um susto. Como é que eu poderia evitar meus dois tópicos favoritos?! A questão da internet era menos grave, já que, como editora de informática, eu tinha um caderno inteiro para especular sobre o assunto. Mas o que fazer a respeito dos gatos?
-- Deixa no “Info etc.” também, -- recomendou o Merval. -- Lugar de gato é na informática.
Não, não era maluquice dele. Desde que nasceu, em 1991, ainda como “Informática etc.”, o caderninho se prestava a todo tipo de excentricidade. Na época, tecnologia só interessava a meia dúzia de leitores, o que nos dava a paradoxal sensação de produzir um suplemento clandestino dentro de um dos maiores jornais do país. Além de mandar recados uns para os outros nas nossas respectivas colunas, entravamos sem a menor cerimônia pelas colunas alheias, que enchíamos de parênteses e de observações; vivíamos brincando entre nós e envolvendo os leitores na brincadeira, como se estivéssemos juntos na hora do recreio. Era muito divertido. Pena que, tirando os iniciados, ninguém mais lesse o que escrevíamos.
E onde entravam os gatos? Simples: por viverem em cima dos monitores e das impressoras, eles apareciam frequentemente como personagens. Catia.cat, minha gata sênior, chegou a assinar a resenha de um jogo pré-Tetris. Era capaz de passar horas observando o vaivém das bolinhas que, de vez em quando, tentava pegar no bote. A resenha fez muito sucesso. Ao mesmo tempo, como a antiga interface de caracteres não se prestava a ilustrações objetivas, não era incomum encontrar a imagem de um gato numa matéria sobre, digamos, sistemas operacionais. Mais tarde, quando as câmeras digitais se popularizaram, eles continuaram na parada, fazendo o óbvio papel de modelos. Por acaso, quase toda a equipe tinha gato em casa, o que deu origem à lenda de que, para ser contratado pelo “Info etc.”, ter gato era pré-requisito mais importante do que falar inglês. Pura maldade: B. Piropo, o mais querido e ilustre colaborador do caderno, sequer gostava de bicho.
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Lembrei disso tudo enquanto procurava uma boa foto da Lolita para ilustrar a crônica de hoje. Mais novo membro da Famiglia Gatto, Lolita estava abandonada na Lapa quando foi encontrada, no começo do ano, por um amigo que passava uma temporada aqui. Era um projetinho de gato, coberto de pulgas e de sujeira, mas já era descolada e cheia de atitude. O Lee levou-a para casa, deu-lhe banho, carinho e comida, e, depois do carnaval, quando voltou para Nova York, deixou-a comigo. Aí ela já era a linda gata que se vê na foto, apenas em tamanho um pouco menor.Lolita veio fazer companhia ao Irineu, aquele gatinho preto e branco que apareceu no estacionamento, e que já saiu do jornal batizado pelo Nelson. Aproveito para informar aos leitores que escreveram pedindo notícias que ele não podia estar melhor. Simpático e humilde, integrou-se rapidamente à Famiglia. Infelizmente, nunca teve com quem brincar: a turma daqui de casa, entre 10 e 17 anos, é uma ala geriátrica, sem paciência para crianças. Depois de levar uns passa-foras dos véinhos, decidiu me adestrar, no que foi, alías, bastante bem sucedido. Seu passatempo favorito era pegar no ar as bolinhas de papel que eu jogava e, compenetrado, afogá-las uma por uma no bebedouro. Depois, trazia os “cadáveres” para mim, deixando uma trilha de papel ensopado pelo caminho.
Os verbos estão todos no passado porque, desde a chegada da Lolita, o interesse do Irineu pelas bolinhas diminuiu drasticamente. Os dois se deram às mil maravilhas, e passam o dia juntos. Lolita, que inicialmente se chamava Lola, por causa do filme “Corra, Lola, corra”, já saiu da caixinha em que veio para cá como dona do pedaço. Cumprimentou os gatos, não teve qualquer medo das suas demonstrações de valentia e descobriu onde fica a cozinha em tempo recorde. Adora colo e cafuné, e ronrona muito alto, mas não sabe miar; tem apenas um fiapo ridículo de voz, que mal se ouve. É tão engraçadinha que conseguiu o que nem o Irineu havia conseguido – acabar com a dignidade do Lucas, o siamês, que perto dela abandona a pose de alfa cat e se atira com gosto nas brincadeiras, sempre tomando o maior cuidado para não machucá-la. É lindo de se ver. A casa anda tão movimentada, por sinal, que até os objetos, que já tinham aprendido a ficar no lugar, voltaram a se atirar das estantes. Antes que algum cometesse um gesto tresloucado, tive uma conversa séria com eles, e passeio-os lá para o alto. Agora reina a paz; estamos todos felizes.
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Como a maioria dos viralatas, Lolita é extremamente inteligente. É também única. Como acontece com os malhados, não há gato no mundo com design igual ao seu. Olho para ela e para o Irineu, outra figura sem par, olho para a Famiglia inteira, composta de refugiados, e penso por que ainda há quem compre gatos, quando se pode ter companheirinhos tão maravilhosos de graça. Mais que isso; a felicidade que eles nos trazem vem, de quebra, com o bônus extra da boa ação de tirar um animal da rua.Adotar é mesmo tudo de bom.
(O Globo, Segundo Caderno, 9.4.2009)
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