Como mataram a Varig
Relato de especialista revela
a causa mortis: Brasil
Na semana passada, recebi dezenas de emails de funcionários, ex-funcionários, familiares de funcionários e até simples passageiros da Varig, que, como eu, não se conformam com o que aconteceu à empresa. Respondi a quantos pude, continuo em falta com tantos outros, mas saibam que agradeço, de coração, a todos que me escreveram. Hoje publico um desses emails, que recebi de fonte confiável, e que me pareceu particularmente importante. Ele é o resumo de alguns fatos que muitos de nós já conhecíamos, mas que, apresentados em conjunto, ganham uma dimensão deveras sinistra. Ninguém precisa ser um Hercule Poirot para descobrir que, independentemente de outros fatores, o que acabou com a Varig foi o simples fato de ser brasileira. Ou, como se diz em economês, o tal “custo Brasil”. Leiam:
“Podemos começar a enumerar as nossas desgraças a partir da reserva de mercado de informática, que proibia às empresas brasileiras a importação de hardware e software, mas permitiu às estrangeiras a instalação de equipamentos e programas de última geração, desenvolvidos a custos milionários em suas nações. Isso obrigou a Varig a criar uma fábrica de computadores, já que não havia fornecedores nacionais, dando origem ao que chamamos de Tevar (Terminal Varig) e, paralelamente, a desenvolver o programa Iris para reservas, com estrutura muito inferior à dos estrangeiros, pela falta de investimentos e de experiência no ramo.
Outro fator que ninguém parece conhecer (ou querer abordar) foi a abertura dos nossos céus para as empresas americanas, durante o Governo Collor, com concessões até hoje não preenchidas no acordo bilateral. Isso permitiu que empresas gigantescas competissem com a Varig com uma série de vantagens: não pagavam Pis/Cofins de 6,7% sobre o combustível (que representa 30% dos custos de uma companhia de aviação); o capital de giro custava, para as estrangeiras, 8% a.a., ao passo que, para a Varig, saia a mais de 100% a.a.; os bilhetes eram taxados em 7,5% nos EUA, em 14% na Europa e, aqui, em 34,7%; os componentes para a manutenção precisavam ser importados com até seis meses de antecedência, tamanha a burocracia, enquanto as estrangeiras compravam no seu próprio mercado, on demand, já que a maioria dos fabricantes ficava em seus países, ou seja, gastavam apenas quando precisavam, livres da incidência de impostos com que arcávamos.
E ainda havia quem acusasse as empresas nacionais de falta de competitividade!
Pouca gente se lembra, também, da criação do EMB 145 Jet Class, jato de pequeno porte (50 assentos), fabricado pela Embraer. Como a Embraer não tinha experiência com o delineamento destes aviões, pediu à Varig que, através da participação de seus engenheiros, técnicos, pilotos e outros funcionários ajudasse no detalhamento da aeronave, o que foi feito. Finalmente, para que o produto pudesse ser lançado, era necessário um “launching customer”. Para incentivar isso, o antigo DAC editou uma portaria que limitava o mercado do Santos Dumont para vôos VDC (vôos diretos aos centros: Brasília, Belo Horizonte, Vitória, Curitiba, com exceção de Congonhas), apenas para aviões de 50 assentos.
A Varig, através de sua subsidiária Rio-Sul, lastreada nesta portaria, encomendou os primeiros 16 aviões, participando do início do sucesso desta aeronave pelo mundo. Cada avião custava em média U$ 140 mil por mês, e o contrato tinha vigência de seis anos. Acontece que, por pressão da Tam e da recém-criada Gol, a portaria foi cancelada depois de dois anos, permitindo o acesso de B-737-300 e Airbus ao Santos Dumont, para VDC. Ambos têm mais de 130 assentos, e custavam em torno de U$ 100 mil por mês. À Rio Sul não foi permitido o cancelamento do contrato, honrado até o final.
Parece maldade demais com uma única companhia, e é mesmo -– mas tem mais. Entre as misérias que afligiram a Varig, concessionária de serviços públicos com obrigações de empresa estatal, mas funcionando em regime privado, estava o ICMS indevido cobrado pelos estados sobre os bilhetes, já transitado em julgado em vários estados. Até agora, o Rio de Janeiro foi o único a pagar o que devia, num montante superior a R$ 1 bilhão.
E o Aerus? Muita gente pensa que este instituto de pensão privada é da Varig, mas ele foi criado pelo governo sobre três pilares: as patrocinadoras (empresas), os participantes (empregados) e uma taxa de 3%, cobrada sobre as tarifas nacionais, com vigência de 30 anos, para dar sustentabilidade ao plano. Após cerca de dez anos, o terceiro pilar (a taxa) foi extinto pelo governo, o que motivou a saída da Tam do plano. Como a Varig já tinha aproximadamente quatro mil aposentados assistidos, continuou a fazer parte do instituto, com todas as dificuldades conhecidas. Este assunto, aliás, é objeto de ação contra a União. Caso sejam vencedoras as companhias aéreas, estarão resolvidos quase todos os problemas do Aerus.
Há outras frentes de luta judicial. A mais notória é a da defasagem tarifária, que se resume ao seguinte: durante o governo Sarney, as tarifas foram congeladas, sem o correspondente congelamento dos insumos, o que causou enormes prejuízos às empresas brasileiras. A Transbrasil, com causa semelhante, embora com valores menores, já ganhou (e recebeu) mais de R$ 700 milhões. O montante da causa da Varig, se recebido, a tornaria a empresa mais saudável da América Latina.
O mais cruel é perceber que ninguém se importa com o que se gastou na formação dos mais de quatrocentos pilotos que fornecemos, graciosamente, para as empresas estrangeiras, que agora os aproveitam sem ter tido o trabalho de formá-los. Sabe quanto custa a formação de um piloto deste nível? Cerca de meio milhão de dólares. Ninguém se importa com as divisas que deixamos de receber, da ordem de um bilhão e duzentos milhões de dólares anuais, assim como ninguém se importa com os milhares de aposentados e funcionários que ficaram em dificuldades. Isso sem falar no caos aéreo que se instalou no país, para o qual hoje procuram bodes expiatórios, mas cuja causa real foi a crise da Varig.”
(O Globo, Segundo Caderno, 19.6.2008)
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