7.12.06


Assassinato por logotipo:
o Natal agoniza na Lagoa


A linda árvore luminosa vira
uma garota-propaganda sem-vergonha



Promessa é dívida: semana passada, prometi uma foto da árvore armada a bem dizer dentro da minha casa. Ei-la. Quem leu aquela coluna sabe, também, que minha primeira impressão não foi das melhores. Estranhei as bolas vermelhas mas, ao vêlas iluminadas à noite, acabei gostando; e devo reconhecer que, com a convivência, já nem as acho mais tão feias durante o dia. Mas isso é questão de somenos. O problema de verdade é que, este ano, a seguradora responsável pela árvore e pelo auê à sua volta pisou na bola. Tanto, e com tal falta de sensibilidade, que nem aquela coleção de cidades brasileiras basta para absorver o choque.

Não há quem não saiba que a árvore da Lagoa é da Bradesco Seguros. Até aí, tudo bem; de alguém tinha que ser. O que nem todo mundo sabia é que é montada, pelo menos em parte, com os nossos suados caraminguás, posto que tira partido da Lei Rounet. Até aí, também, poder-se-ia argumentar que é um bonito espetáculo, que tem sua graça e que alegra a cidade. Mas o que não tem defesa, explicação ou perdão é a novidade perversa deste 2006: o logotipo do Bradesco brilhando nas águas da Rodrigo de Freitas.

Sabemos todos que o Natal virou uma data comercial e que tudo é mercado, mas há (ou deveria haver) um limite para certas coisas. A propaganda que conspurca a linda idéia da árvore seria inadequada ainda que o banco arcasse, sozinho, com toda a festa; torna-se imoral, porém, quando se sabe que esta é financiada com recursos públicos. Eu já ia perguntar onde estão as autoridades que não vêem isso; mas numa cidade onde a própria prefeitura acha normal destruir o Aterro do Flamengo com um projeto indecente, a única coisa que nos resta é tocar um tango argentino. Quanto mais não seja, como homenagem, já que Buenos Aires, pelo menos, está longe de ser a casa da Mãe Joana em que transformaram o Rio de Janeiro.

* * *

Estive, finalmente, na Viva Rio, a nova casa de espetáculos que tem causado tanta celeuma. Não sei como foi a inauguração nem sei como foram os espetáculos subseqüentes, mas no último fim de semana, quando Maria Bethânia se apresentou, não vi maiores defeitos. É confortável, e a acústica é ótima, ao contrário da do Canecão, tradicionalmente problemática. Não tem maiores luxos, é verdade, mas quem precisa de mármores e espelhos quando a programação é boa?! Que seja bem-vinda, e que venham muitas mais no seu rastro.

* * *

Dizer a esta altura que o show de Bethânia é extraordinário é chover no molhado. Quem teve a felicidade de vê-lo e tem um pedacinho de jornal, uns minutinhos de rádio, um blog ou qualquer outra infinitesimal partícula da vasta rede da comunicação formal ou informal não só já manifestou seu entusiasmo como prestou reverência; nem adianta mais dizer "Não percam!", pois quem não garantiu o ingresso no começo da semana já perdeu mesmo. De modo que tudo o que posso dizer é: ?Fiquem espertos e não deixem passar a próxima oportunidade!?.

Bethânia chegou àquele raríssimo estágio em que melhor é impossível. Alguém pode fazer um reparo a uma música aqui, um arranjo ali, uma luz acolá; são questões de gosto, que não se discutem. O fato é que, no seu caráter e na sua cultura, na sua ternura pelas pequenas delicadezas e na sua profunda ligação com a terra, Bethânia é a mais fiel tradução do Brasil que levamos no coração, o Brasil que nos enche de fé e de orgulho.

Na impossibilidade de assistir ao show, ouçam "Pirata" e "Mar de Sophia", e vejam se não tenho razão. No caso específico de "Pirata", não deixem de apreciar a reprodução dos bordados que enfeitam a capa e o encarte. Eles são obra da família Dumont, de Pirapora, Minas <bordado.notlong.com>: os irmãos Demóstenes, Ângela, Sávia, Martha e Marilu, mais a mãe, Antônia, todos artistas de grande versatilidade e talento.

* * *

E já que falei em Natal, em brasilidade e em trabalhos notáveis, recomendo com entusiasmo o admirável grupo Anima, de Campinas, que há 15 anos trava os mais interessantes diálogos entre a tradição ibérica medieval e renascentista e os cantares populares do sertão: aboios, cantos de mendicância, lamentos. O desprezo pelas fronteiras do tempo e pelas linhas que separam o clássico do popular levou o Anima à criação de uma música ao mesmo tempo nova e antiga, inédita para o ouvido, ainda que extremamente familiar à alma.

Pensem no Movimento Armorial, nos instrumentos pobrinhos do povo, nas flautas e nas velhas cantigas em extinção; acrescentem os sons nobres do cravo, os ritmos do que quer que faça barulho, de moringas de cerâmica a sinos japoneses, passando por conchas de caramujos e bombos criollos; embrulhem tudo numa leitura inteligente e sofisticada, e aí estará um resumo mal traçado do que se encontra no recém-lançado "Espelho", CD tão bem cuidado por dentro quanto por fora.

Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras), Valéria Bittar (flautas doce e indígenas), Patrícia Gatti (cravo), Isa Taube (voz), Dalga Larrondo (percussão) e Ricardo Matsuda (viola brasileira), os integrantes deste originalíssimo grupo, podem ser visitados no website <animamusica.art.br>.

(O Globo, Segundo Caderno, 7.12.2006)

Nenhum comentário: