17.8.06


Socorro!!! Como é que se pode viver assim?!

Cronista pede, urgentemente, uma pílula azul, para fazer
de conta que nada está acontecendo



Há um momento em "Zuzu Angel" em que a protagonista explode:

-- É tão fácil andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo!

É, acho que era, sim. Não para quem tinha 20 anos e o sentimento do mundo, claro; mas sim, havia sim uma quantidade de pessoas que tocava a vida, pegava condução, ia ao cinema e bebia chope sem outra preocupação que não a vida imediata, real, palpável: o salário no fim do mês, a comida na mesa, a mulher, os filhos. Uma massa considerável de brasileiros não estava nem aí para a desconstrução do ensino básico, a falta de liberdade de expressão, a corrupção, as prisões, a tortura, o misterioso desaparecimento dos seus semelhantes.

Suponho que fosse fácil andar por aí fazendo de conta que nada estava acontecendo até porque, entre outras coisas, a imprensa, que tudo poderia denunciar, estava sob censura. Ingênuos, achávamos que, quando a liberdade enfim chegasse ao país, traria consigo uma sociedade mais consciente, mais indignada, mais disposta a lutar por sua cidadania. Uma sociedade mais justa. Naqueles tempos binários do "nós" e "eles", do "bem" e do "mal", da "esquerda" e da "direita", tudo era simples e óbvio.

Podíamos nos dar ao luxo de ter ilusões, e de achar que o país tinha jeito -- apenas estava, temporariamente, em mãos erradas.

* * *

A ditadura acabou, os militares recolheram-se aos quartéis, a imprensa não está mais sob censura. E o que descobrimos? Que não existe fundo no poço. Quando achamos que chegamos lá, abre-se um alçapão antes escondido e continuamos caindo. As denúncias cotidianas estampadas nos jornais não escandalizam mais ninguém; já sabemos que o Brasil sempre esteve, está e estará em mãos erradas, haja o que houver, eleja-se quem se eleger.

A essa altura, desfeitos os sonhos de juventude, bem que eu gostaria de andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo, mesmo porque ninguém agüenta tanta notícia desalentadora e vejo, na crônica, o espaço onde, às vezes, se pode refazer uma vaga sensação da normalidade perdida.

Mas, ao contrário do que diz Zuzu no filme, como é difícil andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo! Como é difícil ignorar a degradação do país e da cidade, como é difícil ignorar a degradação das pessoas!

Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo?!

Pois a julgar pelos resultados das pesquisas eleitorais, que apontam uma ampla possibilidade de vitória de Lula, uma nova massa considerável de brasileiros desencavou, em algum lugar, a fórmula do anestésico usado na época da ditadura.

Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo quando, em meio ao caos mais completo, o presidente fala que o Brasil está "todo ajeitadinho"? Quando o presidente propõe uma constituinte sem justa causa (e ainda encontra respaldo entre formadores de opinião para a sua "idéia genial")? Quando o presidente mente sem qualquer pudor sempre que abre a boca -- e fica tudo por isso mesmo, porque, afinal, todos já se conformaram com a farsa da traição sem traidores?

* * *

Como é possível fazer de conta que nada está acontecendo quando o supremo mandatário da Nação, o nosso principal funcionário, encontra apoio moral em José Sarney e Jader Barbalho, faz campanha para Newton Cardoso e para Marcelo Crivella -- e continua contando com o apoio de gente que antigamente era (ou se acreditava) de "esquerda"?!

* * *

Acho que estou sofrendo da mesma síndrome depressiva pós-Copa do João Ubaldo. Não consigo achar mais nada "normal", nem na rua nem no noticiário. Tudo fede, tudo está podre, tudo agride a quem ainda tem um mínimo de sensibilidade e de noção daquilo que, antigamente, chamávamos de "valores". Calçadas esburacadas e "gatos" em todos os postes da Zona Sul, em tese uma área "nobre"; indulto para presos numa data comercial sem qualquer relevância moral ou religiosa; São Paulo transformada em praça de guerra; o Rio na mesma situação lastimável a que já nos habituamos.

* * *

Já nos habituamos?

Não, sinto muito, eu não consigo me habituar. Eu também quero uma pílula azul para andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo, para esquecer a corja a que estamos entregues, para parar de chorar de raiva e de impotência pelo assassinato daquele pobre rapaz português que viajava tão contente com os pais.

Quero uma pílula azul para perder a vontade de escrever para todo mundo, AOS GRITOS: "Fujam daqui, não venham para cá, não ponham os pés neste país sem lei, sem justiça, sem vergonha na cara!"


(O Globo, Segundo Caderno, 17.08.2006)

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