País sem educação
é país sem salvação
O óbvio deixou de ser ululante nos nossos tristes tempos de cafajestagem explícitaUm amigo me liga e avisa para ligar a televisão, onde está indo ao ar um programa sobre educação. Pego o bonde andando ma non troppo: jovens de classe média alta, majoritariamente brancos, visitam uma escola de jovens pobres, majoritariamente negros, que, por sua vez, visitam a escola dos outros. As duas ficam na mesma cidade. Ambas pertencem ao sistema público de educação, mas a diferença entre elas é abissal. De um lado, piscina olímpica, equipamentos esportivos de academia de luxo, computadores estalando de novos, um departamento de música com banda e orquestra, laboratórios de vários tipos e toda a espécie de disciplinas alternativas. Do outro, carteiras quebradas, uma piscina que não vê água há anos, paredes infiltradas. A garotada rica fica perplexa, sem saber como se pode aprender alguma coisa naquele pardieiro; a garotada pobre mal acredita no que vê. No auditório, a mãe de um dos meninos negros cai no choro, e é difícil não chorar com ela.
Não fosse pela excelência da escola rica, e pela presença de detectores de metais na entrada da escola pobre, a cena poderia se passar no Brasil; mas o sistema escolar em questão era o dos Estados Unidos, hoje mais segregado do que nunca, com índices de repetência e evasão jamais registrados. O programa era o da Oprah, que agradecia a Deus ter ido à escola há trinta anos, quando o sistema de ensino público ainda funcionava razoavelmente bem para todos.
A comparação entre as escolas, além de cortar o coração, levava a uma conclusão: dêem a uma criança boas condições de ensino, e ela estudará com prazer, certo? Não. No próximo bloco se via uma escola caprichada numa cidade do interior, em Indiana, onde apenas uma parcela ínfima dos jovens, praticamente todos brancos e de classe média, chega a se formar. A imensa maioria cai fora aos 16 anos. Por que? Porque é o que todos fazem; porque estudar é uma chatice; porque a vida espera lá fora. Brancos e negros, ricos e pobres, todos estão mais ou menos igualados no tédio -- e logo se igualam na desesperança e no desemprego.
Bill e Melinda Gates eram entrevistados. Sua fundação está empenhada em acordar a sociedade norte-americana para o fracasso do ensino e a calamidade que se pode antever para breve. Na sociedade industrial para a qual as escolas foram criadas havia espaço para quem não estudava; na sociedade pós-industrial em que vivemos, este espaço acabou. Bill Gates acha que o sistema de ensino deveria ser reformulado para que todas as crianças tenham as mesmas oportunidades educacionais; para se adequar à vida real; e para despertar o interesse dos jovens. Nunca pensei que um dia eu fosse dizer isso a seu respeito, mas ele está coberto de razão.
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Curiosamente, assisti a este programa no dia seguinte ao da sabatina do candidato Cristovam Buarque aqui no jornal. Além de gostar de Cristovam como pessoa, concordo inteiramente com a tecla em que vem batendo: ou o Brasil se salva pela educação, ou desiste de vez de ser um país decente e relevante. Por coincidência, a pergunta que lhe fiz tinha algo a ver com o ponto central do programa da Oprah: o que fazer para manter as crianças na escola?Cristovam acha que se deve melhorar o ensino, naturalmente, e dar uma forcinha às famílias para que ajudem a manter os filhos na linha. Ele propõe uma poupança-escola que depositaria R$ 100 na conta de cada criança que passa de ano. É uma idéia; mas ando desiludida demais com os rumos do país, quiçá do mundo, para acreditar que possa dar certo.
Cada vez mais as famílias abdicam do seu papel na educação dos filhos -- seja por falta de tempo, falta de paciência ou pura falta de consciência. Quando se fala das camadas mais pobres, então, e de quem mais precisa de educação, sequer há famílias na equação; há mães adolescentes, cujas mães e avós as tiveram adolescentes, numa triste sucessão de vidas desperdiçadas.
A verdade é que há mais forças contra a escola, atualmente, do que a favor ? a começar pelo presidente, que ostenta a sua ignorância na lapela, como motivo de orgulho. Estudar envolve uma cota de disciplina e de perseverança que antigamente se justificava pela perspectiva de um bom emprego e de um lugar respeitável na sociedade; mas tudo isso saiu de moda.
No mundo da gratificação instantânea, disciplina e perseverança são para otários. Os ídolos da garotada são traficantes, Big Brothers, jogadores de futebol, celebridades em geral; ninguém precisa de diploma se tiver a manha, o corpo e os holofotes da mídia. Cérebro é opcional.
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Como sair dessa? Honestamente, nem desconfio. É preciso mais do que um candidato solitário batendo, quixotescamente, na tecla da educação; é preciso um banho de cidadania no país inteiro, um banho de civilidade e, sobretudo, um banho de responsabilidade. Mas por onde se começa, quando a tônica dos tempos é a cafajestagem?(O Globo, Segundo Caderno, 31.8.2006)
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