10.8.06


Não deixem de ver "Zuzu": é grande cinema

Eu sei, eu sei -- ainda outro dia eu disse que voltava no dia 17, e eis-me aqui em pleno dia 10, interrompendo o descanso de vocês e deixando a Nani Rubin, que fecha este caderno, doidinha da silva. Mas acontece que fui ao cinema assistir a "Zuzu Angel" -- e gostei tanto, mas tanto, que não dava para esperar até a semana que vem.

Sabem quando a gente sai do cinema e precisa falar sobre o filme? Pois é.

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O ideal seria que todos sempre fôssemos ao cinema completamente desarmados, despidos de julgamentos, idéias formadas, preconceitos. "Zuzu", porém, fala de uma história que, para a minha geração, aconteceu ainda ontem -- e que, de modo geral, tem sido muito mal contada, assim como toda e qualquer história recente.

É quase impossível lidar com a História, de forma objetiva, enquanto as pessoas que a fizeram, ou pelas quais passou, ainda estão vivas. Há paixões demais, dores demais, feridas que nunca cicatrizaram; há também uma cacofonia impenetrável de opiniões dissonantes e de interpretações diametralmente opostas dos mesmos fatos -- e nem falo das divergências naturais entre opressores e oprimidos, militares e civis, "eles" e "nós". Falo apenas da verdade de cada um, sem me subtrair da questão.

É que ando ressabiada com muita coisa que leio e assisto sobre o que vi, sobre o que acontecia enquanto eu crescia no meio da confusão. Às vezes tenho a impressão de que, nos últimos anos, houve uma proliferação de heróis, uma inflação de defensores da liberdade. Sobretudo tenho a impressão de que, bem debaixo do nosso nariz, construiu-se uma gigantesca tinturaria de biografias.

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Isso não tem nada a ver com Zuzu Angel em si, naturalmente, mas com o estado de espírito com que venho recebendo a maioria dos livros e filmes que tratam de tempos que vivi. Assim, não digo que tenha ido ao cinema com um pé atrás, mas confesso que fui, sim, com uma boa dose de apreensão.

Pois não precisava. "Zuzu Angel" é, disparado, o melhor dos filmes que vi sobre os anos da ditadura. Até porque evita, na medida do possível, a questão ideológica, atendo-se a um sentimento mais profundo, universal e inquestionável: o desejo de justiça. Paradoxalmente, isso faz dele o mais político dos filmes políticos. A revolta de Zuzu, como a de Antígona, pode ser compreendida por qualquer pessoa, em qualquer quadrante e em qualquer época; a sua ação é política em estado puro, limpa da contaminação nojenta que hoje nos agride por todos os lados.

É surpreendente como a história, que todos conhecemos tão bem, ganha tons de suspense nas mãos do diretor Sergio Rezende, também roteirista (com Marcos Bernstein); sabemos, bem ou mal, como os fatos aconteceram, e sabemos como tudo acabou -- mas, ainda assim, a tensão é aflitiva, constante.

A Zuzu que vemos não é uma guerrilheira, não tem ilusões ideológicas nem acredita que o filho e seus companheiros possam mudar o país. Como típica personagem das grandes tragédias, é uma inocente, arrastada para o torvelinho da História contra a vontade.

A forma como o desenrolar desta tragédia acontece diante dos nossos olhos é perturbadora, especialmente pelo que tem de plausível e de inevitável. Poucas pessoas agiram com a tenacidade e a bravura de Zuzu, mas é mérito do filme, e sobretudo de Patrícia Pillar, fazer crer que para aquela mulher, que sequer se sentia particularmente corajosa, aquela era a única atitude possível.

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Patrícia Pillar, diga-se, está simplesmente extraordinária. Já esperava um bom desempenho dela, que está entre as melhores atrizes de sua geração, mas o tour de force que vi vai muito além do que poderia imaginar. Ela consegue fazer com que o espectador se esqueça completamente da sua presença, ou seja, em nenhum momento se pensa "Ah, lá está a Patrícia Pillar fazendo a Zuzu Angel". A personagem está tão solidamente construída que a atriz desaparece à sua sombra, como deve ser -- mas raramente é.

Há inúmeras cenas memoráveis no filme. Numa, Zuzu procura o pai de Lamarca. Em seu último papel, Nelson Dantas transmite toda a perplexidade do sapateiro humilde sem pronunciar uma única palavra. Infelizmente, ele não viveu para ver o comovente resultado do seu trabalho.

Noutra, encerrando um desfile em Nova York, Zuzu apresenta-se de luto, com o retrato do filho nas mãos, a quintessência da tragédia. Imaginem o impacto daquele desfile, subitamente transformado em manifestação política!

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Luana Piovani como Elke Maravilha é um achado, assim como a cena em que a própria Elke, em pessoa, canta numa boate na presença da Elke-personagem. O elenco todo, por sinal, está muito bem e, sobretudo, muito bem escolhido, de Leandra Leal, como Sônia, mulher de Stuart Angel, a Othon Bastos, como um dos generais.

A trilha sonora de Cristóvão Bastos é, previsivelmente, da melhor qualidade. Vale, porém, destacar um detalhe importante: "Angélica", a canção de Chico Buarque que há 30 anos lembra Zuzu, entra apenas no fim, quando rolam os créditos. Com isso, o que seria abertura óbvia vira final lancinante -- e como dói.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.8.2006)

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