4.5.06




"Foste pesado na balança e considerado leve"

(Bíblia, Daniel 5:27)


Quando a gente acha que já viu tudo na vida, aparece o Garotinho fazendo greve de fome -- e entregando-se de bandeja a todos os cartunistas do país. Esqueceram de contar a ele que essa greve, em gordo, se chama dieta? Em Gramado, no Kurhotel, tem um monte de gente pagando uma nota preta para morrer de fome, e a imprensa, ó, nem te ligo.

Fazer greve de fome não é para qualquer um. Para fazer greve de fome sem cair no ridículo precisa ter, antes de mais nada, e além de um mínimo de credibilidade, o physique du rôle, que Garotinho decididamente não tem -- pelo que é, e por tudo que pesa sobre ele. Para o papel serve o corpinho de um Marco Maciel, digamos, ou de uma Madre Teresa de Calcutá, viva fosse. Ghandi também serviria. E até Mick Jagger, mas este é invalidado porque come qualquer coisa.

Mesmo o Dalai Lama (sobrenome muito comum no Congresso), que vem do lado in do mundo e, no dia-a-dia, já usa o figurino certo, vem apoiado por uma Causa Nobre, tem simpatia bem administrada e autoridade espiritual bem educada para o métier, precisaria perder uns quilinhos antes de anunciar greve de fome.

Em suma, greve de fome, só pra quem já não é de muito comer.

Mas não quero ser influenciada pelos estereótipos. Abaixo a ditadura do corpo! As últimas informações que tenho dão conta de que o governador perdeu uns quilos, respira sem a ajuda de aparelhos e ainda reconhece a família. Pois, para que não digam que estou escrevendo movida pela mais sórdida inveja -- levei um mês inteiro para perder um quilo e trinta e sete gramas, e ninguém da imprensa comentou; colegas!!! -- declaro meu incondicional apoio ao grevista.

E mais. Proponho que os cidadãos cariocas se solidarizem também com Garotinho, para que ele seja bem-sucedido neste seu projeto político (ou, como sempre, entendi mal?): vamos todos cercar a sede do PMDB e vigiá-la dia e noite, para que nenhum sabotador mal-intencionado lá entre com maletas, bolsas, saquinhos ou qualquer recipiente ou invólucro que possa esconder coxinhas, rissoles, quindins e chuviscos. Sequer vitaminas.

Vamos ajudar o eterno candidato a todos os cargos a chegar ao fim de sua proposta! Não vamos permitir que ele fracasse! Vamos ajudá-lo a cumprir seu martírio até o amargo fim, torcendo para que seu exemplo edificante seja seguido por toda a classe política.

É de heróis assim que a Pátria precisa.

* * *

Passa um pouco da meia-noite. Acabo de chegar de Copacabana, de onde voltei a pé depois de assistir ao Spike Lee em cartaz no Roxy. É uma caminhada razoável, de meia hora, que estiquei vindo pela Atlântica, olhando os quadros e quinquilharias da feirinha para turistas e parando no Zona Sul da General Osório.

Noite linda, clima ideal para andar a pé; tudo estaria na mais perfeita ordem se, na cidade em que vivemos, fazer isso não fosse considerado uma temeridade. Por acaso, duas pessoas me ligaram enquanto eu andava, e ambas manifestaram profunda preocupação em relação à minha segurança.

Tranqüilizei-as o melhor que pude, observando que assaltos ocorrem nos mais diversos horários -- mas, pelo sim, pelo não, tirei o relógio e os anéis e guardei-os no bolso da calça. Também tirei da bolsa a carteira de identidade e os cartões de crédito, menos preocupada com um eventual ladrão do que com a burocracia de renovar uma e cancelar os outros.

Não sou medrosa de natureza, gosto das madrugadas e não pretendo abrir mão da minha cidade só porque está infestada de bandidos; mas também não sou louca de ignorar as suas circunstâncias. De modo que, em vez de andar tranqüila, ruminando idéias, como seria direito de qualquer criatura na sua própria terra, apertei o passo e vim remoendo um cardume de sentimentos conflitantes.

Lembrei, com um aperto no coração, da época em que, menina, estudava à noite na Aliança Francesa da Duvivier e voltava pela praia para o Bairro Peixoto, sem sombra de preocupação; lembrei também de inúmeras caminhadas noturnas feitas ao longo da vida, em lugares tão diferentes quanto Nova York, Veneza ou Lisboa -- envoltas, todas elas, numa calma que há tempos se perdeu no Rio de Janeiro.

Mais triste que tudo, porém, foi perceber que, sem que eu me desse conta, o tempo e uma sucessão de administrações calamitosas se encarregaram de tornar realidade um antigo sonho de juventude. Como a maioria dos jornalistas em começo de carreira, eu também pensei em ser correspondente de guerra, atividade que implicava, então, em viajar para pontos remotos do planeta.

Hoje, mal ou bem, qualquer jornalista carioca é um correspondente de guerra. Ao reportar que fui ao cinema e que voltei viva, inteira e de posse dos meus pertences, estou registrando a exceção, a trégua, a boa fortuna que me protegeu.

Que Deus se apiede das cidades em que a paz é digna de nota.


(O Globo, Segundo Caderno, 4.5.2006)

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