3.11.05



Zurubu

Uma cidade entregue à própria sorte

O faroeste está aqui ao lado, a guerra está logo ali;
as "autoridades", porém, não estão nem aí


Sábado à tarde. Almoço com um grupo de amigos queridos, jornalistas em sua maioria, numa das residências mais simpáticas e hospitaleiras do Leblon. Antes da sobremesa, a filha da dona da casa informa, em tom casual:

-- Pessoal, o túnel está fechado, se alguém de São Conrado ou Barra quiser dormir aqui não tem problema, a gente se ajeita.
-- Fechado, é? Por quê?
-- Tiroteio.
-- Ah, para variar...
Comunicado e convite foram aceitos com absoluta naturalidade, felizmente ninguém era de São Conrado ou da Barra e a conversa voltou ao tópico anterior.

Na segunda à noite fui jantar com uma amiga que mora na Gávea, numa casa projetada por Lúcio Costa, cercada de árvores, pássaros e miquinhos, e com uma das vistas mais espetaculares do Rio. Um pequeno paraíso de alvenaria e natureza, em proporções perfeitas; mas minha linda amiga estava exausta.

-- O problema é que não consegui pregar o olho a noite inteira. O barulho do tiroteio estava insuportável. Tinha uma metralhadora que parecia estar dentro do meu quarto.

Há algum tempo, um amigo que mora na Barão da Torre me ligou de tarde. Tínhamos combinado cinema no Estação Ipanema.

-- Olha, acho que não vai dar para chegarmos a tempo.
-- Ué, por que?
-- Você não está ouvindo o tiroteio da tua casa?

Ele levou o telefone para a janela. Parecia queima de fogos de Ano Novo. Mas, como moro atrás do Cantagalo, o paredão de pedra que dá para a Lagoa isola o barulho. Desistimos: quando tem tiroteio engarrafa tudo. Assim que ele desligou, aliás, um segundo amigo que estava passando pela área me ligou do carro:

-- Olha, se você tiver que sair de casa e pegar a Barão da Torre esquece, porque está tendo um tiroteio e ficou tudo engarrafado.

Na cobertura do Gravatá, na Praça General Osório, que realmente fica pertíssimo do Cantagalo, os tiroteios são, freqüentemente, a trilha sonora da conversa. Quem nunca foi lá estranha e chega a se assustar um pouco:

-- Não tem perigo das balas baterem aqui?
-- Não, nenhum -- explica ele. -- Um especialista em balística já garantiu que é impossível qualquer projétil chegar até aqui. Pelo menos, com o tipo armamento de que os traficantes dispõem atualmente...

Isso, claro, é dito em tom jocoso, e todos acabamos rindo e brincando com os riscos que o desenvolvimento da indústria bélica representam para o Gravatá.

Mamãe mora num apartamentinho antigo e aconchegante na Barão de Macaúbas. Esta é uma pequena rua de Botafogo, muito arborizada, cheia de prédios baixos e amáveis, e que sai de uma praça na São Clemente. A rua vive fechada pelas balizas que os meninos da vizinhança improvisam com pedras ou tocos para jogar futebol. Seria um oásis urbano se não fosse, por acaso, um dos acessos para o Dona Marta. Às vezes, a coisa fica feia. Mas o apartamento da Mamãe está, felizmente, fora da linha de tiro, de modo que a gente não chega a se preocupar muito.

* * *

Assim se vive numa guerra, sem espanto, aceitando os inconvenientes táticos causados pelas batalhas; assim se vive num mundo conflagrado, porque a nossa alma cria carapaças que a defendem da barbárie cotidiana -- ou morreríamos todos de puro horror antes mesmo de sermos atingidos pela bala, perdida ou não, que, mais dia, menos dia, vai nos encontrar numa esquina qualquer.

Assim vivemos na nossa cidade, achando "normal" o que em qualquer lugar civilizado é impensável; e temos sorte, somos privilegiados por não precisarmos conviver com policiais e traficantes trocando tiros na laje de casa, como acontece com quem vive o terror nos morros.

Mas não há carapaça freudiana que consiga diminuir o desespero que, dia a dia, toma conta da alma carioca; não há negação que consiga esconder que estamos à deriva, em total desgoverno, navegando numa cidade que o presidente detesta, os governadores acasalados ignoram, o prefeito espezinha.

Tomara que sejam todos varridos pelas urnas para o lixo da História, de onde nunca deveriam ter saído.

(O Globo, Segundo Caderno, 3.11.2005)

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