A marca da maldade
Aviso aos navegantes: "Harry Potter e o enigma do princípe" não é apenas mais um episódio da série. É, talvez, o melhor de todos; e é, com certeza, o mais sombrio, aquele em que não só Harry e seus amigos deixam a infância para trás, como, provavelmente, também o fazem os seus leitores. Quem sabe por isso, as reações que despertou tenham sido tão controversas.Curiosamente, o principal pecado de que o acusam é, a meu ver, uma das suas grandes virtudes: o ritmo. "O enigma do príncipe" tem cenas de ação suficientes para deixar qualquer montanha russa no chinelo, mas elas vêm a seu tempo, e não na sucessão habitual de sustos necessária para prender a atenção da garotada.
A dinâmica deste livro supostamente infantil é absolutamente madura, e muito pouco condescendente com a eventual impaciência das ex-crianças que, em 1997, descobriram o universo paralelo de Hogwarts. Nos oito anos que levaram os primeiros leitores de Harry Potter da infância à adolescência, o mundo passou por traumas de todos os tipos, de ataques terroristas a catástrofes de proporções nunca vistas.
O reflexo desta sucessão de desastres, que já vinha se insinuando sutilmente nos dois volumes anteriores, chega ao auge no sexto (e penúltimo) da série, que nos mergulha, já nas primeiras páginas, num cenário abertamente conflagrado.
Mais ou menos como na vida real, também na fantasia de J. K. Rowling as forças do mal estão descontroladas. Como na vida real, também, parte deste descontrole nasce da arrogância da burocracia e da miopia da administração pública. Parece familiar, e é para ser mesmo: a inteligência e a vontade de fazer o bem não são as tônicas dominantes da vida.
Pior que isso: nem sempre a sabedoria e a bondade são armas eficientes, pelo contrário. De todos os livros da série, o "Enigma do príncipe" é o menos maniqueísta, e o mais angustiante ao expor a fragilidade da nossa existência sem bulas ou rótulos. Ninguém é absolutamente confiável, ninguém é sempre sábio, nem sempre a experiência nos salva.
Por outro lado, quantas tragédias e desgraças poderiam ser evitadas se apenas as pessoas confiassem mais umas nas outras... Mas como confiar, se ninguém é absolutamente confiável?
J. K. Rowling é a prova viva de que mágica existe. Quando se pensaria que já esgotou todos os truques e que não tem mais de onde tirar novidades, ela se supera de forma espetacular. Dá uma sofrida rasteira emocional nos leitores e, de quebra, deixa tudo pronto para o Grand Finale, a ser revelado no próximo e último livro -- que, fica claro no último capítulo, será completamente diferente de todos os outros.
É inegável que há uma onda de marketing intragável em torno de Harry Potter, mas que ninguém se engane: por trás do hype e dos quaquilhões em jogo, há uma escritora extraordinária, responsável por uma das séries mais interessantes de todos os tempos.
Para felicidade dos leitores brasileiros, ela encontrou, em Lia Wyler, uma tradutora à sua altura.
(O Globo, Segundo Caderno, 24.11.2005)
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