20.7.06
O dia em que fui presa em Paris
Quis o Bom Deus que, em março de 1977, o governo francês convidasse a editora do Segundo Caderno do "Correio Braziliense" para uma semana de comemoração da inauguração do Centro Georges Pompidou; e que, salve Ele!, esta editora fosse eu. Assim é que, com 24 anos incompletos, mochila nas costas, sandália de pneu, poncho peruano e uma cabeleira que ia quase pela cintura, desembarquei na cidade, para horror dos diplomatas impecáveis que me esperavam na pista da aeronave num reluzente Mercedes preto último tipo.
Alguém estava com a roupa errada, e não eram eles.
No trajeto até o hotel, percebi que ficaram aliviados ao perceber que a selvagem recém-chegada não só era capaz de se comunicar em palavras, como, ainda por cima, o fazia num francês bastante razoável; e que, incroyable !, sabia até quem eram os nomes do sofisticado cardápio cultural preparado para a imprensa estrangeira. Ainda assim, como apresentar aquela coisa no front-desk do Lutetia, uma espécie de Copacabana Palace da Rive Gauche?
Pobres diplomatas. Hoje me ponho no seu lugar e fico de cabelos em pé só em pensar na saia justa em que os meti. Ser hippie em Brasília já era meio esquisito, mas em Paris era definitivamente out, pelo menos nas altas rodas do Quai d?Orsay. Mochileiros como eu dormiam nos bancos da estação, e olhe lá.
Diga-se a favor dos bravos empregados do Lutetia que nenhum fez cara de espanto. Fui regiamente acomodada numa suíte maior do que o apartamento em que morava na época -? e, imediatamente, telefonei para todos os amigos para virem me visitar.
Eu nunca havia estado em Paris antes, mas, naqueles anos, o que não faltava na cidade eram brasileiros exilados. Na mochila, além de uma ou duas trocas de roupa (todas igualmente inapropriadas), eu trazia goiabada para um, livros para outro, um gravador para uma terceira; de modo que, em dois dias, eu já tinha ótima turma local.
Entre uma cerimônia no Pompidou e um concerto na Sale Pleyel, nos encontrávamos na Rue Mouffetard, comíamos lindamente a ótimos preços e percorríamos a cidade de graça. Para isso, bastava entrar no metrô pela porta da saída. As portas eram diferentes das de hoje, que mal dão passagem para uma pessoa. Ouvíamos desaforos à beça dos nativos, mas, naquela época e com aquela idade, eu apenas achava tudo muito divertido... até o dia em que fomos pegos pelos flics, os tiras, sem dúvida alertados por algum cidadão furioso com aquele bando de arruaceiros.
Todos fizemos caras de anjos: como podiam pensar que jamais nos passaria pela cabeça entrar no metrô sem pagar?! Cara e conversa não convenceram, porém, e os flics pediram nossos documentos. Todos tinham identificação, menos eu, instruída no Brasil a jamais sair na rua com o passaporte, que poderia ser roubado por algum perigoso subversivo. Eu nada tinha a temer dos perigosos subversivos meus amigos, mas se perdesse o raio do passaporte levaria meses até conseguir outro no Itamaraty -- e precisava voltar ao Brasil em poucos dias.
Os policiais ficaram tão contentes em encontrar alguém sans papiers que concentraram as atenções em mim e deixaram os outros para lá. Apelei:
-- Estou em Paris a convite do governo francês!
-- Claro -- disse um dos flics. -- E eu sou a Rainha da Inglaterra.
-- Mas é verdade! Posso provar. Só preciso ir até o Hotel Lutetia pegar os meus papiers.
-- Ao Hotel Lutetia?!
Os flics perderam a compostura e tiveram um acesso de riso. Depois, ainda enxugando as lágrimas, me levaram para a delegacia. Pedi a um dos amigos que passasse no hotel para pegar o passaporte e a carta em papel timbrado, chique ao último, que estavam na gaveta da escrivaninha. No caminho para a delegacia, insisti tanto e tão convincentemente na minha história, que me deixaram ligar para o Lutetia. Pedi para falar com o gerente e, mico dos micos, expliquei que estava chez les flics , e que um amigo passaria em breve por lá para pegar os papiers.
Foi quase tão difícil convencer o homem a deixar um desconhecido subir para o meu quarto quanto convencer os policiais de que eu não tinha tomado chá de cogumelo, mas, finalmente, tudo acabou bem e, uma hora depois, o amigo chegava com o passaporte e a carta para me salvar.
Ao ver a papelada, os flics ficaram perplexos. Onde é que o governo andava com a cabeça para convidar criaturas desqualificadas como eu?! Ainda assim, me pediram desculpas ("A senhora parece muito mais nova", uma forma polida de dizer que eu já devia ter aprendido a me vestir e a me portar direito), me ofereceram um café bem forte e me deram carona até o hotel, cheios de dedos e galanteios.
Nem preciso dizer que nunca mais andei num ônibus, trem, metrô ou vaporetto sem o bilhete devidamente carimbado, registrado, perfurado e o que mais exija a legislação local.
Ontem voltei pela primeira vez ao Lutetia depois de quase 30 anos, para mostrá-lo à minha filha. Paris mudou muito, a globalização acabou com qualquer vestígio de elegância turística, mas o Lutetia continua igual, com seus mármores, seus espelhos e seus bronzes reluzentes.
O poncho peruano, os cabelos desgrenhados e a sandália de pneu sumiram na poeira dos tempos, mas, usando Birkenstocks, bermudas e uma camiseta berlinense, me senti tão inadequada e fora de lugar quanto nos idos de 1977. Dei um bordejo rápido pelo hall e fugi correndo, antes que alguém daqueles tempos me reconhecesse.
(O Globo, Segundo Caderno, 20.7.06)
Um comentário:
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